Arrumando
minha mochila para voltar para casa, depois dessa manhã chata na faculdade,
ouço a voz do Kauã e do Joseph. Os inseparáveis. Eles seguem pelo corredor
conversando de um jeito eufórico. Param na porta e me veem atravessando a sala.
Os dois falam ao mesmo tempo sobre a palestra que o fortão do Enrico deu para
turma de educação física e blá blá blá.
Os caras parecem que estão falando de alguém com superpoderes, pois estão
sorrindo enquanto tagarelam. Só vi essa euforia, quando fomos assistir
Homem-Aranha 2 no cinema.
— A tal
palestra foi boa, hein?! Vocês parecem até uma das garotinhas que pediram para
tirar foto com o bonitão lá no pátio. Tô estranhando vocês! — falo saindo da
sala e passando entre os dois.
Eles se
entreolham e o Joseph diz:
— Caralho de
mal humor é esse seu? — Vira de costas e anda até a escada.
— Tchau! Seu
Zé ruela — diz Kauã seguindo o Joseph
Antes de
desceram pela escada os dois se viram, me olham com desdém e mostram o dedo do
meio para mim. Fecho os olhos e respiro fundo. Sei que hoje foi uma manhã do
cão para mim, e esses caras são os únicos que me aguentam o dia todo, todos os
dias. São meus melhores amigos e nunca fiquei eufórico com nada que eles tenham
feito. Sou um egoísta, sei disso.
Decido seguir
os dois.
— Porra, me
espera — desço as escadas e subo o tom de voz.
— Vai se
ferrar! Você passou a manhã inteira com essa cara de cu, e não somos obrigados
a aguentar suas crises de filho da puta mimado — Joseph se vira para me encarar,
mas sem parar de andar.
— Ah! Qual
é? — tento aliviar para o meu lado. —Vamos sair hoje à noite?
— Não! — Os
dois dizem de uma vez.
Chegamos ao
estacionamento e eles entram no carro e somem do meu campo de visão.
Sentindo
como se um trator tivesse passando por cima da minha barriga, ando até o meu
carro e sigo direto para casa. Começa a chover forte e para tentar desviar de
um cachorro que apareceu no meio da avenida, acabo passando por cima de algo
que fura o pneu esquerdo da frente. Fico com tanta raiva que soco o volante e o
air-bag destrava bem na minha fuça.
— Puta que
pariu! — grito e abro a porta, saindo do carro.
Quando ponho
o pé para fora, outro carro passa, e passa por cima de um poça e acabo levando
um banho. Xingo todos os palavrões possíveis. O carro para a dois metros à
frente de onde estou e começa dá ré ficando mais próximo. De tanta raiva que
sinto, fecho com força a porta do meu carro e ainda bato no teto dele.
De dentro do
outro carro, um Jaguar preto, sai nada mais nada menos que o tal do Enrico
German. Ele caminha até onde estou e mais uma vez, não deixo de notar seu corpo
que agora tem os músculos marcados pela roupa social molhada. Seu topete cai
pela testa, e mesmo estando todo molhado no meio da estrada, debaixo de uma
chuva do cacete, o cara é simpático. Qual
a droga que ele usa?
— Cara! Teu
pneu estragou feio — diz olhando para o pneu furado. — Posso te ajudar...
— Meu velho,
não — estendo a mão em sinal de pare. — Eu sei trocar o pneu do meu carro. E
não foi nada demais — olho para pneu. E está um estrago só — Merda!
Ando até a
traseira do meu carro e pego o estepe. O Enrico não sai de junto e fica me
olhando trocar o pneu. A chuva não dá trégua e ele parece não se importar,
então digo:
— Cara, na
boa. Valeu pela atenção, mas pode me deixar, eu sei me virar.
— Eu
reconheço quando alguém não está num bom dia, e no seu caso, seu dia está sendo
pior que o inferno.
Bufo
soltando o macaco no chão.
— Não te
interessa como foi o meu dia, seu almofadinha...
— pego o macaco e começo a trocar o pneu.
— Quer
saber, se vira sozinho seu garoto mimado. — Ele dá as costas e entra no seu
carrão de luxo.
Não me causa
inveja, também tenho um, mas só está com pneu furado. Só me faltava essa! O almofadinha pagando de altruísta.
O Jaguar vai
embora com seu dono bonitão dentro e eu fico aqui debaixo de chuva forte
trocando o pneu furado da minha BMW. Rezando para que ninguém conhecido me
visse nesta situação trágica. Finalizo a troca do pneu. Guardo o pneu furado na
traseira do carro, limpo as mãos na calça e dou partida. Sigo direto para casa.
Só quero me livrar dessa roupa molhada.
####
Acordo cedo,
nem dormi direito. Depois de me arrumar desço para tomar café, meu pai já saiu
para empresa dele. O doutor Armando Souza Leão é um dos maiores advogados do
país e sócio na empresa de produtos alimentícios da família. Ele e meu tio são
os donos.
Meu pai é um
cara muito conservador, mas é hipócrita, pois ele já traiu minha mãe com outra,
quer dizer com outras. Ele ainda frequenta de vez em quando um puteiro que fica nos limites da cidade,
e até já me levou lá. Foi constrangedor para todos naquele dia, pois eu não
consegui ficar excitado com a prostituta peituda que estava deita completamente
nua na minha frente. Eu tinha dezesseis anos e seria minha primeira transa, mas
não foi consumada. A prostituta, que era muito experiente, percebeu na hora que
eu não curtia aquilo e me lembro até hoje suas palavras: “Não se preocupa, não
vou contar para seu pai. Direi que você foi sensacional”. Ela recebeu uma boa
grana para me encobrir. Quando me recordo, chego a ficar enjoado. Depois desse
dia, decidi nunca mais falhar com outra mulher na cama, me enganei. Para transar
com uma mulher, preciso estar bêbado ou ficar pensando no Zeb Atlas nu.
Patético.
Minha mãe
deixou um recado em cima da mesa que diz: “Sai cedo para visitar sua irmã. Te
vejo no almoço”. Mais uma vez, tomo café sozinho. Que legal! Torço a boca depois
de ler o bilhete e o amasso jogando de lado. A cozinheira me serve o café e
pergunto para ela onde se meteu a Jacira, nossa outra empregada. Ela me diz que
Jacira está de férias e volta em uma semana.
Meu celular
toca. É o Luís.
— Fala mané!
— atendo no viva voz.
— Mano,
preciso te contar uma coisa.
— O que foi
dessa vez? — falo depois de beber um pouco de café.
— Amanhã, na
minha casa, uma orgia. Tipo sacanagem da boa, sabe?
Outra
festinha do Luís. Rapidamente tiro do viva voz, pois não iria deixar a empregada
da casa ouvir esse tipo de conversa.
— Vem cá,
mano. E teu lance com a Suelen? Se ela descobrir isso, vai dar merda e das
grandes, você sabe como ela é ciumenta...
— Não joga
terra no meu plano, seu lesado. A Susu vai viajar com os pais e só volta daqui
a três dias. A família dela quer vê-la e eu tô livre durante esse tempo.
Os pais do
Luís e do Lucas moram em outra cidade e o casarão que eles têm aqui na cidade
foi dado pelo pai deles para que o Luís pudesse viver quando se casar com a
Suelen. Nessa casa moram os gêmeos e a Suelen. Contudo, quando a Suelen não
está, eles fazem a festa, e são sempre festas regadas a muita bebida e sexo.
— Tá bom, eu
topo, mas antes vou almoçar com minha mãe depois da aula e à noite passo ai
para gente acertar tudo para amanhã.
— Beleza
irmão! Te vejo as nove, pode ser?
— De boa! As
nove eu chego aí.
Marcado o
horário, termino meu café e sigo direto para a faculdade. Depois tem almoço com
a mamãe e tenho o pressentimento que o assunto desse almoço será: “ E aí meu filho,
quando vai me apresentar sua namorada oficial?” Preciso estar zen para não discutir com minha mãe.
####
Depois que
saio da faculdade, sigo para o restaurante onde minha mãe marcou o almoço. É um
lugar conhecido da alta sociedade, requintado e cheio de frescura. Sinceramente,
se fosse no bar do Zé da favela não faria diferença para mim, mas é minha mãe,
então ele só escolhe esse tipo de lugar.
Minha mãe,
Angelina, é uma mulher muito bonita e a admiro muito. Ela tem cabelo loiro
igual a Amanda, minha irmã mais velha. Ela aguenta as traições do meu pai,
segundo ela, pelo bem da família. Para ela, a “família” deve sempre permanecer
unida apesar de tudo, passar por cima dos problemas, unida. Para minha mãe,
podemos estar passando pelo maior problema, sempre tem que manter as aparências.
Quem está de fora sempre nos verá inteiros, sem defeitos, como uma família
perfeita. Eu nunca entendi o porquê dessa devoção toda a família se, às vezes,
ficamos um para cada lado. Porém, sempre a ouço dizer: “Família é, acima de
tudo, o alicerce maior na vida de um ser humano”. Dona Angelina tem em sua
visão que a nossa família é perfeita, mas está longe de ser até uma família de
verdade, quem dirá perfeita.
Olho por
cima das várias cabeças dentro do restaurante e de longe, vejo minha mãe. Está
em nosso lugar cativo nesse lugar. Aproximo-me, cumprimentando-a com um beijo
na bochecha e ela me retribui com outro beijo. Sento-me a sua frente e
pergunto:
— Já fez o
pedido?
— Ainda não,
meu querido — diz sorrindo.
Eu conheço
bem minha mãe e sei que ela tem algo para falar que a está deixando impaciente.
Todas as vezes que ela precisa conversar sobre algo sério, sempre marca um
almoço fora de casa, mais precisamente neste restaurante que fica numa parte
nobre da cidade.
— Que tal um
salmão com molho de ervas finas — digo piscando para ela. — Sei que a senhora
gosta — sorrio de lado.
Nem sempre
eu sou um rinoceronte com os outros, sei ser legal e amigável, e com a minha
mãe é mais tranquilo de conversar.
— Ótima
pedida. — Ela chama o garçom.
O cara
usando gravatinha borboleta preta, anota nosso pedido e se retira. Eu respiro fundo
e vou direto ao ponto, não suporto rodeios.
— O que está
acontecendo, dona Angelina? — digo segurando sua mão sobre a mesa.
Ela sorri
sem mostrar os dentes, está triste, e abaixa o olhar. Neste momento sinto que
tem algo muito sério acontecendo.
— Mãe. Diz o
que foi.
— Seu pai —
fala com a voz embargada. — Ele me traiu de novo, e desta vez foi com a moça do
golfe lá do clube, a cuida dos carrinhos — Ela põe a mão na boca para abafar o
choro.
Sinto tanta
raiva de mim, por se impotente, e do meu pai que tenho vontade de arrancar
todos os pentelhos dele usando um cortador de grama. Essa não foi a primeira,
nem a segunda e ao que parece, não será a última vez que ele traiu a confiança
da minha mãe. Em meu subconsciente me pergunto, como ele pode trair a mulher que
dedicou trinta anos da vida dela a um homem que declarou amar e respeitar até
que a morte os separasse? Como?
— Filho da
put...
— Não. Não
fale assim. Acima de qualquer coisa, ele é seu pai, Diego. Sempre te deu de tudo.
— Nem tudo —
recoste-me na cadeira sem tirar a mão de cima da mesa.
— Como
assim, nem tudo? Você sempre teve tudo, meu filho. — Ela caricia minha mão. —
Teve carinho, amor, atenção e uma boa educação.
— Da parte
da senhora eu recebi tudo isso. Da parte dele... só cobrança.
— Não diga
isso...
— Por que
raios está defendendo esse canalha? Ele te traiu inúmeras vezes — bufo de
raiva.
— Ele é seu
pai — diz chorando.
— Ele é um
canalha — falo entre os dentes.
Ela enxuga
as lágrimas com o guardanapo. Respiro fundo, e a encaro. Acaricio sua mão para
que ela sinta que pode contar comigo.
— Não chora,
mãe. Eu vou ficar do seu lado, sempre.
— Eu sei meu
filho. Eu te amo.
— Também te
amo — me levanto e abraço forte.
Sei o quanto
é importante para ela ser um exemplo de mulher perfeita, mas independentemente
de qualquer coisa que aconteça, eu sempre ficarei ao lado dela. Volto a sentar
e nosso pedido chega. Almoçamos tranquilamente, ou pelo menos tentamos. Depois
de saber de mais essa “pulada de cerca” do meu pai, tranquilo é última coisa
que eu consigo ficar. Quando terminamos de almoçar, decido dar um passeio com a
minha mãe. Entramos em algumas lojas, ela escolhe uma blusa nova, e depois saímos.
Minha irmã liga dizendo que não poderá vir ao nosso encontro, então voltamos
para casa. Subo para meu quarto e tento estudar, mas só penso em um cara...
— Aí
caramba...tanta coisa para pensar, mas só o almofadinha aparece dentro da minha
cabeça.