Passei muito
tempo da minha vida escondendo quem sou de verdade. Sozinho, comecei a buscar
informação sobre a homossexualidade. Na adolescência, quando os desejos foram
ficando mais fortes, uma confusão se instaurava na minha cabeça. Tinha vergonha
de conversar com alguém da família, minha mãe morreria se soubesse que único
filho homem que ela tem gosta de garotos, meu pai me deserdaria e me chutaria
para fora de casa como um cão sem dono. Sempre temi a reação deles. Então,
escondi quem eu era.
Fui criado
para ser um menino, que gosta de fazer coisas de menino. Como brincar de
carrinho, jogar bola, apostar corrida com os outros meninos, soltar pipa, e
tudo isso eu fiz. E até gostava, mas também sentia que algo estranho havia
comigo. Sempre me senti diferente. Por isso hoje eu digo: “eu não virei gay, só
não havia descoberto o que eu era de fato”.
Hoje, três
dias depois da conversa que tive com o Joseph na academia, sinto que me aceitar
primeiro foi a decisão mais importante que tomei na vida. Durante esses dias
remói tudo que passei durante esse tempo, e mesmo começando a me aceitar, ainda
tenho medo da reação das pessoas. Vencer esse medo é o próximo passo.
Sentado na
grama do campus, perto do refeitório da faculdade, debaixo da sombra de uma
mangueira em flor, observo o céu. Está ensolarado, mas não muito quente. Penso
nos meus amigos. Lembro do dia da festa na casa dos gêmeos. Os gêmeos aceitaram
bem que dois do nosso bando fossem namorados. O Luís se aproveita disso para
jogar charme nas garotas que insistem em querer serem aconselhadas pelo Joseph
ou pelo Kauã. O Lucas se assustou no primeiro momento, mas depois levou tudo
numa boa. E eu tive a pior reação de todas, mas é melhor virar a página.
Por falar
neles, os quatro se aproximam de onde estou. Sentam-se formando um círculo.
— Tenho uma
novidade — diz Kauã abrindo a bolsa e retirando ingressos. — Vamos ao show da
nossa banda favorita.
Todos
dizemos de uma vez: Uau!
— Onde
conseguiu os ingressos, amor? — diz Joseph agarrando Kauã pelo pescoço.
Os gêmeos
olham estranho para os dois e depois para mim, talvez para ver se eu desaprovo
a conduta do casal. Não vou mentir, sinto um certo desconforto em vê-los assim,
mas como estou tentando ser uma pessoa melhor e me aceitando, preciso também
aceitar as pessoas como eu. Sorrio para os gêmeos. Eles entendem que não devem
falar nada e desmancham a expressão de estranheza.
—
Despedaçados é melhor banda que faz o melhor cover do pop rock, você acha que
eu perderia a oportunidade de irmos todos juntos — Kauã aponta para nós. — Esse
será o nosso show!
— Nosso show
— diz Joseph olhando nos olhos de Kauã e o beija, um selinho.
— Já contou
para eles? — Kauã se vira para nós.
— Achei
melhor fazermos isso juntos — diz Joseph.
Nos
entreolhamos sem entender nada.
— Perdi
alguma coisa? — falo com a testa franzida.
Eles
respiram fundo e Kauã diz:
— Vamos
morar juntos, depois desse fim de semana. Vou me mudar para o apartamento do
Joseph.
Isso sim é
uma notícia surpreendente. E um passo importante para os dois.
— Que merda!
— diz Luís. — Vocês agora são um casal de verdade. Quem diria, meus melhores
amigos são gays. — Ele olha para o irmão e diz: — Lucas, não vai me dizer que
você...
Lucas se
vira para o irmão e arregalando os olhos diz agitando as mãos:
— Tá maluco?
Sou homem — olha para mim, para o Kauã e para o Joseph como arrependimento. —
Foi mal, aí! Vocês continuam sendo homens, e tal, mas eu não gosto de homem,
não sinto desejo por outro homem.... Ah, vocês entenderam.
Sorrimos com
o jeito desastrado do Lucas falar. Ele às vezes, é tão espontâneo e sincero
quanto o irmão, e maluco também.
— Sabe o que
é interessante na nossa amizade? — diz Kauã.
Balançamos a
cabeça em negativo.
— Resolvemos
nossas diferenças em tempo recorde — ele sorri.
— De fato.
Mas, não pense que é tão fácil ver vocês dois tentando viver normalmente — digo
lembrando das piadinhas e ofensas que escutamos desde então.
— Isso
estamos tirando de letra. Não é fácil, mas vamos conseguir superar isso também
— diz Joseph.
— O que fez
você tomar a decisão de se mudar para a casa do Joseph? — Lucas fala.
Kauã e Joseph
se entreolham e o Kauã responde:
— Meus pais
me botaram para fora de casa. Disseram que não aceitavam um filho viado e então
o Joseph me convidou para morar com ele — Kauã aperta o queixo de Joseph. —
Estudaremos juntos, vai ser legal.
Se algum
dia, eu conseguir contar para meus pais que sou gay, serei tratado da mesma
forma. E o problema não será só não ter para onde ir, muito sentimento
envolvido e a decepção será o pior de encarar.
Nossa conversa continua com a euforia de todos
em ir ao show da banda “Despedaçados”. Será no próximo fim de semana, e uma
coisa é certeza, vamos beber muito e curti o melhor som do pop rock da região.
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Depois da
aula, dentro do meu carro, escolho um CD qualquer. Por incrível que parece, eu
tenho o álbum com a trilha sonora do musical Dreamgirls. Lembro que ganhei esse
CD da minha irmã, que me pegou uma vez cantarolando uma das músicas do filme.
Sempre escondi a paixão que tenho por musicais. Se meu pai descobrisse que seu
filho prefere os musicais da Broadway a pornô hétero, ficaria vermelho de ódio.
Escolho “Steppin’ To The Bad Side”, coloco os
ósculos estilo aviador, dou partida no carro e fazendo charme de mafioso sigo
para casa. Pensando na vida, revendo algumas coisas que fiz, desejando não ter
que fazer mais besteiras daqui para frente, assim eu sigo meu caminho. Bem, é o
caminho até a minha casa, mas nesse pequeno espaço de tempo dá para por muita
coisa em ordem dentro da cabeça.
Quando
estava saindo da sala, pelos corredores da faculdade, dei de cara com o Alex.
Já faz um ano desde que ele mudou de horário só para não ter o desprazer de me
encontrar. Sou um desprazer ambulante. Ele está certo na decisão. Seu namorado,
com certeza, ficaria emputecido de
tanto ciúme se soubesse que ainda poderíamos nos esbarrar pelos corredores. O
tal Otávio, seria capaz de aparecer aqui só para terminar o serviço que começou
lá no litoral, arrancar meus dentes. Olhei para Alex, e ele não desviou, veio
falar comigo. Ele se aproximou, ficou parado na minha frente e disse:
— Você está
bem, Diego?
Lembro que
estava nervoso por vê-lo novamente. Ele continua lindo, mais lindo. Ele sorriu
educado depois que perguntou como eu estava. Respondi que estava bem e que
minha vida estava entrando nos eixos, tudo mentira. Ele ficou feliz em saber
que estou bem, foi o que disse estendendo a mão para me cumprimentar.
Despediu-se dizendo que estava atrasado para um seminário que por isso tinha
chegado cedo na faculdade. Respirei fundo ao sentir a mão do Alex na minha, e
nada mais. Nenhum arrepio, nem desconcerto, nem a obsessão maluca que tinha,
tudo se foi. Tocar o Alex foi estranho, de um jeito bom para mim, pois conclui
que estava me libertando do amor platônico que sentia por ele. Isso é um
excelente começo.
Paro o carro
na porta da garagem. Entro dentro de casa, e o silêncio é intrigante. Ando até
a cozinha e nossa cozinheira está terminado de limpar o balcão. Ela é branca e
tem cabelos loiros, é uma senhora de uns cinquenta anos. Vira-se para falar
comigo e avisa que minha mãe saiu para um encontro do clube do livro que ela
participa com as amigas, avisa que meu pai e minha irmã ainda não voltaram de
seus respectivos trabalhos.
— Obrigado
por avisar, Jacira — digo saindo da cozinha.
Subo direto
para meu quarto, jogo a bolsa em cima da cama, tiro a camisa ficando só de
calça jeans e ligo o notebook. Não sei o motivo, mas estou curioso por saber
mais sobre o tal Enrico que todos falam. Clico no navegador e a página inicial
de pesquisa abre. Digito o nome dele: Enrico German e clico em imagens.
Arregalo os olhos.
Várias
imagens dele sem camisa, ou só de sunga, ou só de calça. Imagens de propagandas
de roupas esportivas. Estou impressionado com o tamanho do portfólio desse
cara. Clico em vídeos, e um Uau! Sem som sai da minha boca. O canal de vídeos
dele tem mais de dois milhões de seguidores. Segurei o queixo, literalmente.
Começo a fuçar sobre sua história e não tem muita coisa, o mais polêmico é que
ele já fez vídeos pornôs. Só que uma reportagem me chama atenção. Em um site
popular de notícias, existe a seguinte manchete: “Juan Marco German, milionário no ramo das telecomunicações, encontra
seu herdeiro perdido” e junto tem fotos do Enrico e do Juan Marco. Lembro
de algumas pessoas falando sobre essa história. Empresas ficaram à beira de
colapso quando essa notícia veio à tona. Sem conseguir conter a curiosidade,
vasculho essa história por vários sites e cada um tem uma manchete diferente
falando da mesma história. Tem até relatos que o Enrico era garoto de programa
antes de reencontrar seu pai. Isso sim é novidade.
— Quem
diria, hein Enrico Almofadinha? Garoto de programa! — penso em voz alta
passando as imagens no computador.
Não posso
negar, ele um cara muito bonito. Seus olhos azuis encantam. Rosto marcante,
sorriso doce e contagiante. Cada traço seu exala sedução. As fotos da internet
são das mais variadas. Tem Enrico usando terno e gravata, e a elegância com
essas roupas é fascinante. As fotos de sunga são as melhores, pernas grossas. As
de roupas de academia também, mostram quase tudo dele. Braços grandes,
grosso... estou babando em cada foto que vejo.
Abro a
imagem onde Enrico está usando uma sunga azul com cordões soltos, e fico
admirando cada pedaço do seu corpo. Mordo o lábio, e engulo a saliva, pois a
boca está inundada só em ver essa imagem. Recosto-me na cadeira e perco a noção
de tempo olhando para a foto. Não sei quantos minutos foram que passei olhando
a foto, até que sou puxado para a realidade.
Minha irmã
está do meu lado, ela toca meu ombro e diz:
— Quem é
esse? — puxa um pufe e senta-se ao meu lado.
Até que
enfim, uma pessoa que não conhece o Enrico.
— É um cara
que conheci... Quer dizer, ele apareceu na faculdade, dias atrás, para dar uma
palestra — digo colocando as mãos atrás da cabeça.
— E ele
chamou a atenção de todos, acertei?
Digo que sim
com a cabeça. Levanto-me da cadeira e me jogo na cama. Amanda me segue, mas
puxa a cadeira que eu estava sentado, ela estica as pernas na ponta da cama.
— Você
sempre soube, né verdade? — digo fechando os olhos.
— Estamos
tendo aquela conversa que eu disse que poderíamos ter? — Ela sorri.
— Sim.
— Diego, só
um cego para não perceber que você é gay — diz desabotoando o blazer preto. —
Aquela sua obsessão pelo Alex te entregava, dava muito na cara, mas quem teria
coragem de falar alguma coisa? Ninguém. Nosso pai daria o maior chilique.
Nessa parte
sou obrigado a concordar, se nosso pai soubesse ou suspeitasse de algo o
inferno se instauraria nessa casa. Preferi viver no meu inferno particular,
sofrer sozinho, foi meu erro.
— Eu
encontrei com o Alex — digo quase sussurrando.
— Nossa! E
como foi? — franze o cenho. — Você não foi grosso com ele, foi?
— Claro que
não, Amanda. Por que eu seria grosso com ele?
— Por que
você é o Diego que sempre conseguiu tudo, e sempre foi estupido com todo mundo.
Acabo de
levar um soco na boca do estômago. Minha irmã sabe ser tão direta e sincera,
que até me assusto.
— Estou
mudando, mana. Espero conseguir.
Ele bate
palmas parecendo uma foca feliz.
— Dieguinho!
É assim que se fala. Estou feliz que tenha acordado para a vida.
— Eu não dou
tão na cara assim, dou? — digo me sentando na cama.
— Hum!
Deixe-me pensar — diz com a mão no queixo. — Para nossos pais não. — Amanda se
levanta, pega seu blazer e diz: — Preciso ir, quero tomar um banho e por meus
pés na água morna. — Ela anda até a porta e antes de sair do meu quarto,
pontua: — Aconteça o que acontecer, estou junto com você nessa — solta um beijo
e sai.
Fico só,
organizando meus pensamentos. A minha aceitação foi um grande desafio, pois a
ficha começou a cair quando vi minha mãe vivendo uma mentira, um casamento
infeliz. Eu não quero viver assim, eu não quero isso para mim, é como se não
estivesse vivendo de verdade.