quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

Desejo Escondido - Capítulo 04





Sou acordado com um tapa na minha bunda. Resmungo virando o rosto no travesseiro. Outro tapa, e dessa vez me viro para encarar quem me brinca de matar mosquito logo na minha bunda. É uma mulher, negra, com lábios carnudos, cabelo encaracolado com mechas loiras e um belo par de peitos. Ela se deita ao meu lado, acaricia meu rosto e me beija, eu correspondo. Ela me beija suave, com delicadeza, um beijo sedoso, mas que não me dá tesão. Afasto-a e pergunto como vim parar ali.
— Não lembra?
Balanço a cabeça em negativo.
— Uau! Então a cachaça que você tomou foi forte. — Ela diz se levantando.
— Como assim? — bocejo e sinto o cheiro do meu hálito. Puro álcool.
— Vou refrescar sua memória...
Sento-me na cama e cubro minha nudez com o lençol vermelho de seda.
— Você chegou aqui, quer dizer lá embaixo no bar, bem chateado. Soltando fogo pelas ventas. Pediu a melhor água ardente que temos, e foi atendido. Depois você ficou tão bêbado que começou a cantar as meninas do lugar. Repetia a frase: eu não sou viado. Com a voz embolada por conta das muitas doses de cachaça. Nenhuma de nossas garotas quis ficar com você.
— Garotas? Isso é um puteiro? — franzo o cenho.
Ela ri de um jeito jocoso e continua a falar:
— Sim. Mas, é um puteiro de respeito, somos as melhores dessa região — diz vestindo seu hobby de estampa de onça.
— Que região? — esfrego os olhos ainda embaçados.
— Ora essa! Como assim que região? Estamos nos limites da cidade, meu lindinho.
— Puta merda! — digo tapando os olhos e jogando a cabeça para trás. — Preciso ir embora.
Levanto-me da cama, e pego minha cueca que está em cima do criado mudo e me visto. Enfio minhas pernas na calça, rapidamente visto a camisa polo e pego nas mãos meus pertences que estavam espalhados pelo quarto de cor vermelha e preta.
— Onde pensa que vai? — A puta diz cruzando os braços. — Ainda não recebi pelo serviço — mira o olhar em direção ao meio das minhas pernas e diz: — E que serviço, você é uma delícia e precisa ficar bêbado mais vezes.
Meneio a cabeça em negativo sem entender o que ela quis dizer com essa observação. Não preciso ficar bêbado para transar... quer dizer, preciso de algo forte para estar na cama com uma mulher.
— Tá aqui sua grana.
Abro minha carteira que estava no bolso de trás da calça, e jogo na cama seis notas de cem reais.
Sou caridoso com essas prostitutas, foi o que o canalha do meu pai ensinou quando me levou a um puteiro ainda adolescente.
— Nossa! — diz languida contando o dinheiro. — Aparece aqui mais vezes — solta um beijinho.
Saio do quarto e desço as escadas do lugar até o andar de baixo onde fica o bar. É um lugar rústico, e lembra os bares do faroeste, mas sem aquela porta esquisita que abre pelo meio. Algumas meninas me olham, e dou sorriso tentando ser educado. Despeço-me de quem acho ser o dono do lugar. Com os sapatos ainda nas mãos, abro a porta do lugar e dou de cara com o meu carro sendo arranhado por três moleques cheira cola.
— Seus filhos da puta! — grito e eles saem correndo para longe.
Meu carro levou dois arranhões, um de cada lado. Sinto tanta raiva que dou chutes no carro e ainda bato com força no teto. Encaro minha BMW azul metálica e não consigo acreditar que vim parar quase fora da cidade, em um lugar barra pesada, dentro de um puteiro malcheiroso.
O que me falta acontecer? Tomar um banho de água suja da rua?
Olho para os lados e vejo que não vem nenhum veículo, pois tem uma poça de água suja bem do lado do meu carro. Entro de uma vez e dou partida. O quanto antes sumir desse lugar, melhor para minha segurança e saúde.
####
Volto para casa depois de passar a noite fora. Subo a escada, na ponta dos pés para não fazer o mínimo de ruído, em direção ao meu quarto. Não quero ser pego com a bunda de fora, metaforicamente falando. Abro a porta do meu quarto, ascendo a luz e tomo um susto. Vejo minha irmã sentada na beira da minha cama, com as pernas cruzada como se estivesse atendendo algum de seus pacientes.
— Que susto do caralho, Amanda — solto o ar preso nos pulmões.
— Irmão, você deu mancada.
— Eu sei Amanda, eu sei. Mas eu precisava espairecer, sei lá. Estava ficando sufocado — digo me sentando ao seu lado e tirando a camisa.
— Onde passou a noite? E não diga que foi na casa dos gêmeos, pois sei que não foi. A mamãe ficou preocupada com você. Por Deus, Diego! — diz colocando a mão no meu ombro.
Respiro fundo e me deito na cama com as mãos na cabeça.
— Sabe, mana. Você é única pessoa que não me julga.
— Nunca te julgaria. Além do mais, você é meu irmão caçula e eu te amo, mesmo você sendo um chato.
Gargalho com a reação sincera da minha irmã.
— Eu descobri ontem que o Joseph e o Kauã são gays, e que eles se pegam.
Ela me olha de um jeito indiferente com o que acabei de revelar. Como isso fosse uma coisa normal e totalmente aceitável, para ela deve ser eu acho. Ela é psicóloga e deve receber alguns caras com crises de aceitação.
— Hum! E daí? Isso afetou você? A amizade de vocês?
Não respondo nada, pois não sei como me sinto de verdade, ainda não processei essa informação. E não estamos numa consulta, mas ela sempre tenta puxar tudo de mim para que eu me abrir, eu gosto, pois é com ela que consigo desabafar tudo que sinto.
— Diego...
— Eu senti inveja. Eu acho — tamborilo os dedos na minha barriga.
— Por que eles estão se pegando? — ela arqueia sobrancelha.
— Não, não por isso — sento-me ao seu lado novamente. — Senti inveja da coragem deles em se assumirem na frente de praticamente de toda faculdade e no meio de uma festa. Todos acham que somos os caras que nunca seriam gays. O Joseph e o Kauã não têm jeito de gays, você já viu como eles são? Eles não têm caras de gays.
Ela balança a cabeça em positivo, com os olhos repletos de compreensão me encarando. Dá sinal para que eu conte tudo que estou sentido.
— Então, Amanda — continuo. — Como pode eles serem gays, se nem jeito para isso eles tem?
— Irmãozinho — diz pousando a mão na minha coxa. — Não é preciso ter jeito de gay para ser gay. Porque gay não tem jeito, eles são o que são. Não existe isso. Então quer dizer que é gay só aqueles que se montam, que se vestem de mulher e saem fazendo performance? Aqueles que pintam e cabelo colorido e falam: ‘mana, o bofe é um arraso’ — imita um gay afeminado. — Você acha que é isso?
— Sim, acho — digo num fio de voz.
— Pois trate de rever seus conceitos, meu irmão — bate na minha coxa e sorri de lado. — Seus amigos se gostam e isso é o que importa. Já parou para pensar no quão difícil pode estar sendo para os dois nesse momento?
— Não. Nem faço ideia — encolho os ombros.
De fato, não faço ideia de como está sendo a reação dos outros e os comentários na faculdade. Não faço ideia de como eles irão encarar a reação das famílias, o pai do Kauã seria capaz de expulsa-lo de casa. Não faço ideia de nada.
— Vocês são amigos de longa data, sempre se deram bem. Acredito que eles, pensaram que você seria o não julgaria a situação, mas não foi isso que aconteceu, não é? — balanço a cabeça em negativo. —  Vai ver, eles estão precisando dos amigos nessa hora.
Ela se levanta da cama e antes de sair do quarto, se vira para mim e completa:
— Diego. Quero que saiba que, sou sua irmã e sempre vou te amar, não importa a decisão que tome, vou te apoiar sempre — dá uma piscadinha e fecha a porta.
Minha irmã tem um jeito todo especial de trabalhar com seus pacientes, mas eu não sou paciente dela. Penso que ela já saiba, antes mesmo de mim, o que sinto em não conseguir me assumir para todos, nem para mim mesmo. Se ela diz que me apoia, quem sabe um dia eu não criarei coragem para sair de uma vez por todas do armário.
#####
Meu celular toca, já são oito da noite, e é o Luís. Com certeza ele deve estar sem entender nada até agora. Atendo.
— Fala mané!
— Mano, onde você se enfiou o dia todo? Te liguei várias vezes, liguei para sua casa. Ia até começar uma investigação estilo CIS para saber onde te encontrar.
Sorrio com o jeito do Luís. Ele sempre tem as melhores saídas para situações como essa, e as mais idiotas respostas também.
— Quis dar um tempo, só isso — bocejo, relaxando meu corpo na cadeira de frente para o computador.
— Quer conversar? Sabe que tu é meu brother, chefe da matilha.
Não sou chefe nem da minha cabeça.
— Para com essa de chefe da matilha. Não somos nada.
— Somos sim! Os lobos. Os mais populares! As garotas nos veneram, sabia?
Sorrio. Só esse louco para tirar um sorriso depois de tudo.
— De onde você tirou isso? — ajeito-me na cadeira. — Depois de ontem, duvido sermos alguma.
— Ah, meu amigo! A descoberta da gayzisse do Joseph e do Kauã, nos deixaram mais populares. Assim, nem todos nos veem com bons olhos, mas viva a diversidade, meu amigo!
Acho que ele bateu forte com a cabeça.
— Você tá bêbado? Drogado? Cara, já mandei você parar de fumar aquela coisa estragada.
— Mano, as gatinhas estão chegando junto, pois querem ser amigas dos viados. Sobra mais mulher para gente. Já pensou nisso?
— E você já pensou que a Suelen vai descobrir tuas puladas de cerca e chutar tua bunda branca para bem longe?
— Para, vai! Esquece sua prima.
Era só o que faltava! Os gays da turma virarem atração da mulherada. O que elas querem? Conselho sobre que vestido usar na festa de formatura? Faça-me o favor!
— Tchau Luís. Vou dormir, minha cabeça está quase explodindo e amanhã nos falamos.
— Beleza, então! Fui! — Ele desliga.
Jogo o celular em cima da mesa do computador e me deito na cama. Estou só de cueca samba-canção. Fecho os olhos para tentar dormir. Será que quando eu acordar, tudo terá voltado para o seu lugar? Como seria bom se fosse assim.
#####
Acordo cedo e decido passar na academia antes de ir para faculdade, faz dias que não ponho os pés naquele lugar. Passei a noite toda pensando em tudo que aconteceu. O meu mal humor insuportável, o Joseph e o Kauã se assumindo em público. E eu, o que fiz de diferente, além de ficar remoendo o que aconteceu a um ano? Nada, não fiz nada.
Coloco a bicicleta presa na barra de ferro que fica na frente da academia, todos alunos que vem de bicicleta colocam ali. Eu decidi deixar o carro em casa, já que academia fica no bairro onde moro. Um pouco de exercício, liberar endorfina e me ajuda a acalmar as ideias. Sempre que estou extremamente estressado, venho aqui para pensar enquanto fico ensopado de suor e com os músculos doloridos.
Passo pela catraca e sigo para esteira, faço um alongamento rápido antes de começar a correr um pouco. Coloco os fones de ouvido e ouço Lithium do Nirvana. Fixo meu olhar, enquanto corro, no parque arborizado a minha frente. Pelo vidro da sala tenho uma bela visão do lugar. Pessoas fazendo caminhada ao ar livre, idosos conversando e tem algumas até que tricotam. Inspiro o ar tão profundo, que me imagino correndo entre as árvores do parque. Estou tão concertado na imagem e na minha corrida, que não percebo quem está ao meu lado, mas sei que tem alguém correndo na esteira do lado. Olho de soslaio e vejo ombros largos, de um cara de quase 2 metros. É o Joseph.
Ele está de cabelo preso, usa uma camisa regata azul e short preto, a tatuagem, de um dragão, que tem no ombro fica visível. Ele não me olha, deve estar chateado, com certeza está chateado. Volto a me concentrar na imagem do parque. Noto que ele tira os fones de ouvido, e eu acabo fazendo o mesmo. Minutos depois, ele desliga a esteira, desce e fica do minha frente de braços cruzados. O encaro de volta. Seus olhos me fuzilam. Com uma tapa forte, ele bate no botão e desliga minha esteira.
— Tá maluco? — digo descendo da esteira.
— Precisamos conversar — diz de cara fechada.
Meneio a cabeça em negativo, pego do chão, ao lado da esteira, minha coqueteleira com isotônico. Bebo e depois encaro o Joseph.
— O que foi dessa vez? — digo já sabendo qual o assunto.
— Sem essa, Diego. Somos amigos, certo? — sua voz grossa, troveja pela sala e algumas pessoas nos olham.
Balanço a cabeça em sinal de positivo. Depois de tudo ele ainda me considera seu amigo, e na verdade, fico aliviado em saber disso, e também muito feliz por não ter perdido meu melhor amigo depois da minha atitude idiota.
— Se somos amigos, então por que tratou a mim e ao Kauã daquele jeito na festa? Por que?
Enxugo o suor da testa com o antebraço e não falo nada.
— Responde, Diego — diz ele se aproximando.
Seu peito arfando em cima dos braços cruzados. Juro que estou com medo dele me dar um soco se eu falar alguma besteira. Bebo mais um pouco do isotônico e o encaro.
— Você pode pegar quem quiser. Isso não é da minha conta...
— Ah, não é? — sorri de lado com ironia.
— Não — falo sucinto.
— E por que deu aquele show na festa? E não diga que estava bêbado, pois não estava.
Respiro fundo me aproximo do Joseph e estando bem perto dele digo:
— Foi estranho para mim ver os meus melhores amigos se beijando na frente de todos. Sempre fomos os caras mais desejáveis pelas as garotas e... Eu tive inveja da coragem de vocês — digo de uma vez.
Começo a perceber que chegou a hora de colocar para fora tudo que sinto, e o cara que está de pé na minha frente é um dos meus melhores amigos. Ele seria a última pessoa no mundo que me julgaria, mas eu o julguei, e talvez não mereça sua amizade.
— Diego, eu sei o que aconteceu lá no litoral, com aquele lance do Alex...
— Eu não tenho essa coragem. Eu sou um merda — digo olhando para o chão.
Encosto na esteira. Ele se aproxima e também encosta ficando ao meu lado.
— Sabe, eu também não tinha coragem — diz olhando para seus pés.
— E quando ela apareceu? Na noite da festa?
Nós dois estamos com a cabeça abaixada olhando para nossos tênis.
— Sim. Naquela noite — respira fundo.
A academia não está muito cheia, e as poucas pessoas que tinha na área das esteiras, coincidentemente saíram nós deixando a sós, então sinto-me a vontade para conversar com ele.
— Ver o Kauã sendo agredido por você, logo por você, nosso melhor amigo, foi o impulso que eu precisava para assumir de uma vez o que sinto por ele, e ele por mim. Ver a pessoa que você ama levar um soco só porque falou a verdade e não fazer nada a respeito, é ter muito sangue de barata e eu não tenho. Você me conhece e sabe o que sou capaz de fazer para defender aquilo que amo.
Sabe aquela inveja que falei? Pois é, está ficando maior depois de ouvir isso.
— Eu sempre desconfiei que existia algo entre vocês dois. Faz muito tempo.
Dizem, que o sexto sentido não é privilégio só das mulheres. Todos os homens não têm, com certeza, é só olhar os gêmeos para saber que mal eles usam os cinco, que dirá seis. Mas, depois que voltei do litoral, a um ano atrás, e que todos ficaram sabendo o que aconteceu, percebi que os dois, Joseph e Kauã, passaram a agir como se não se importassem com quem poderia descobrir sobre eles, contudo, acho que meu sexto sentido foi mais rápido. Foi complicado para mim desconfiar deles, e está sendo mais que complicado aceitar que essa desconfiança é real.
— O garanhão da turma. O líder da matilha. O grande Diego Souza Leão — diz Joseph fazendo um alto-falante com as mãos. — Sempre admirei você. Sempre quis ser como você era quando começamos a estudar na faculdade. Lembra do dia que nos conhecemos?
Sorrio ao lembrar da cena. Foi engraçado, pois o Joseph não tinha cabelo tão grande. Sempre foi altão, mas não tão forte como agora e usava óculos, era ridículo. Estávamos na fila da matrícula quando ele chegou pedindo informação, e sua voz grossa, grave fez com que várias meninas da fila virassem seus pescoços para olhá-lo. E desde então ele ficou popular pela voz de trovão. Ficou conhecido pelo apelido de “Lobo Trovão”, outros chamam ele agora de “Thor” por conta do cabelão loiro. Naquele dia eu ganhei um grande amigo.
— Claro que lembro. Lobo Trovão — sorrio.
— “Essa é a fila da matrícula?” — diz imitando o jeito tímido que fez naquele dia.
Gargalhamos. Como fazia tempo que não sentia isso, que não tinha isso. Uma conversa franca com um amigo. Eu fui um tolo arrogante.
— Eu te admiro, Joseph, sempre te admirei, mas por ser imaturo, arrogante e mimado, nunca admiti isso nem para mim — digo apertando seu ombro.
Ele sorri de lado e fala:
— Sabia que estamos sendo zoados, esculachados e viramos piadas na faculdade? É meu amigo, nossa vida não será fácil daqui para frente.
— Mas o Luís disse que as garotas nos adoram...
Ele gargalha.
— Aquele brisado é um idiota — se vira para mim. — Duas garotas vieram me perguntar se eu podia acompanha-las para escolher o vestido de formatura e ele viu uma brecha para conquistar as meninas. É um pervertido! — sorri.
— Sério que elas te chamaram para isso? Puta que pariu! — gargalho.
— Sim, é sério. Para boa parte das mulheres todo gay entende de moda, cabelo e do mundo fashion. Tenho cara de blogueiro de moda? — franze o cenho.
— Nem cara de gay de você tem — continuo rindo.
— Gay não tem cara, Diego — torce a boca.
Não consigo parar de rir, e o Joseph começa a gargalhar junto comigo. O que pensei sobre o fato das mulheres nos adorarem, segundo a teoria do Luís, estava certo. Elas acham que todo gay é um poodle mini que dá para pôr na bolsa de grife.
— Brou! — digo me recompondo das risadas. — Vou começar a me aceitar — respiro fundo.
— Bom começo, amigo — aperta meu ombro.

Ele me encara, sorri e me chama para o abraço. Somos amigos, e quero que essa amizade dure por muito tempo. O primeiro passo eu dei, tentar me aceitar, respeitar o que sou e tentar ser uma pessoa melhor.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Desejo Escondido - Capítulo 03






Cada vez que me olho no espelho, vejo o que sou de verdade. Um cara covarde que não tem coragem de assumir o que é, e o que sente. Sempre fui muito reservado, introvertido e até bastante agressivo, além de covarde. Não sei do que preciso para me libertar dessa covardia. Dizer aos quatro ventos que gosto de beijar garotos? Fora de cogitação, pois a família perfeita que minha mãe tanto presa e o filho machão e pegador que meu pai tem tanto orgulho, estariam a ponto de desaparecer e eles se decepcionariam tanto que nem sei como reagiriam.
Arrumo a gola da camisa polo branca de listras vermelhas, passo um pouco de gel no cabelo. Encaixo a fivela do cinto na calça jeans escura. Calço os tênis e pronto, sigo para festa na casa dos gêmeos mais sacanas desse mundo.
Desço as escadas de casa e ando até a garagem, mas ao passar pelo corredor ouço vozes vindas da sala de estar. Meus pais estão conversando calorosamente, ou pior, estão brigando. Fico com o ouvido encostado na porta da sala e sinto o ódio me tomar por completo. Traição para mim, é a pior coisa que existe. Todas as ações são passíveis de perdão, mas a traição, não. Para mim, não.
— Como você pode, Armando? Eu te amei durante todos esses anos... — diz minha mãe com a voz embargada.
— Isso não vai mais acontecer, Angie, eu juro. Foi...foi um deslize, não é para tanto.
— Ah, tá bom! Então, agora você é um adolescente irresponsável que comete deslizes. Você é um idiota, papai — digo entrando de supetão na sala e surpreendendo os dois.
Meu pai fica tão furioso que se aproxima de mim com “sangue nos olhos”, ele bufa e me segura pelo braço, jogando-me para fora da sala.
— Não é da sua conta, moleque. Este assunto não te diz respeito.
— Idiota! — grito na sua cara.
Ele não hesita e roda a mão no meu rosto. Desequilibro um pouco, mas me seguro no aparador de madeira escura que fica próximo à entrada da sala de estar.
— Não, Armando — grita minha mãe vindo me amparar.
Meu pai, nervoso, passa as mãos nos cabelos grisalhos e anda de um lado para o outro. Ele para na minha frente e diz:
— Desculpa... — respira fundo e volta para dentro da sala de estar trancando a porta.
— Mãe, promete que não vai deixar esse idiota te machucar?
Ela chora e me abraça.
— Mãe — abraço ela com força.
Ela chora e tento acalma-la. Olho no relógio e já está passando do horário que marquei com os caras, mas que se dane. Minha mãe vem em primeiro lugar. Segurando-a pelos ombros, a conduzo para a biblioteca. Tranco a porta atrás de nós e sento no sofá marrom de couro, ela apoia a cabeça em meu ombro e continua a chorar. Desde que me entendo por gente, nunca vi minha mãe tão fragilizada como agora. Tem horas que a pessoa não aguenta mais segurar o que sente e acaba explodindo, em lágrimas, ou em xingamentos, ou até em agressões físicas. Ela explodiu em lágrimas e está inconsolável.
Ouço batidas na porta e grito:
— Vá embora, pai. Não queremos te ver.
— Sou eu, Amanda. Abre a porta, Diego, por favor.
Levanto-me e abro a porta, minha irmã entra. Ela me abraça e vê a mamãe chorando com a cabeça enterrada no sofá. Parece que veio do trabalho, ele conta que estava subindo os degraus da entrada quando ouviu nossos gritos. Agradeço por ela ter chegado bem na hora.
— Mana, fica com ela, por favor. Eu preciso sair e — olho bem nos olhos castanhos de Amanda — se acontecer alguma coisa, não hesite em me ligar. Chego aqui em um minuto.
Ela faz que sim com a cabeça e se aproxima da mamãe. Ajoelho-me diante das duas e aviso:
— Eu vou sair, tem uma festa na casa dos gêmeos, mas não quero deixar a senhora assim...
— Pode ir meu filho — diz enxugando as lágrimas. — Vou ficar bem. Já passei por isso antes.
— Mas, mãe...
Ela me interrompe beijando a minha testa.
— Pode ir tranquilo, sua irmã me fará companhia — abraça Amanda.
Eu abraço as duas antes de sair. Passo pela porta da sala de estar e ouço uma música erudita no último volume. Penso em abrir a porta, olhar na cara do meu pai e manda-lo para a puta que o pariu, mas não, não posso perder as estribeiras com a minha mãe chorando do outro lado. Saio de uma vez e sigo direto para a festa na casa dos gêmeos.
####
Paro a BMW na entrada do casarão dos gêmeos. Quando vou abrir a porta, o Luís aparece com uma lata de cerveja em cada mão. Ele me abraça e me dá uma das latas dizendo que essa é só para começar. Seguimos pelo hall do casarão até parar na sala de jogos que fica atrás das escadas. O lugar é espaçoso e está cheio de garotas, uma parte são prostitutas que o Luís contratou. Tem algumas meninas da faculdade, aquelas que se matam para estar em uma festa como essa, pois somos os “lobos” daquele lugar, os mais populares e, às vezes, os mais idiotas. Quer dizer, quase sempre
Perto da mesa de bilhar, o Lucas está agarrado a duas morenas com os peitos de fora. Elas derramam tequila entre os peitos e como um “cachorrinho” Lucas lambe o líquido que escorre pela pele delas. Ele passa a língua e depois pede mais.
Cumprimento alguns alunos que eu não conheço, mas sei que estudam na faculdade de saúde, pois todos me olham como se tivessem me visto antes e me cumprimentam amigavelmente.
A festa está “bombando” e todos bebem, beijam, dançam sem pudor. Ninguém aqui está preocupado com nada. Amanhã tem aula, mas quem se importa? Todos estão se lixando em ter que acordar cedo no outro dia, ressacados e com a cabeça explodindo depois de beberem todas. Tomo um gole da minha cerveja, que ainda está gelada e pergunto ao Luís se ele viu o Joseph.
— Ele deve estar lá em cima — diz perto do meu ouvido. — Eu o vi subindo com uma galera.
Nos entreolhamos. Eu saco o que ele quer dizer. Luís sabe que gosto de muita putaria, e se for uma orgia, melhor ainda. Subo a escada do casarão e sigo para direita, paro na terceira porta, que o Luís me indicou onde estaria o Joseph e as outras pessoas.
Bato de leve na porta e depois abro bem devagar pondo o rosto na fresta. Visualizo uma imagem bem peculiar. Joseph não está na cama, mas Kauã sim, e com duas garotas e dois caras.
Dois caras?
Todas as orgias que participei com eles, foram com mais mulheres e de homens só nos cinco. Não conheço esses caras. Uma das meninas e um dos caras se levantam e andam até o banheiro, a menina diz que vai chamar o Joseph, e o cara volta vestindo uma cueca samba canção dizendo que vai pegar mais bebida. Ele é tão alto quanto o Joseph, tem cabelos pretos e curtos. Ele para na porta e me vê, cumprimenta-me batendo de leve no meu ombro e depois sai do quarto. Fico parado olhando a cena, um emaranhado de mãos, pé e pernas parcialmente cobertos por um lençol branco. Minutos depois o cara que saiu, volta e me olha de cima para baixo dizendo:
— Se quiser participar, pode ir tirando a roupa. — Ele sorri malicioso e sai.
 O Kauã se levanta da cama, que é uma cama enorme, acho que dá três da minha, e se aproxima de mim. Ele está nu, com o pau duro e balançando enquanto anda.
Que visão do inferno!
— Irmão, chegou bem na hora — sorri de lado e ele tenta me abraçar, mas eu o afasto.
Percebo que o cara que ficou no quarto está se mexendo na cama. Ele desenterrar a cabeça dos travesseiros e eu levo um susto tão grande, que dou um passo para trás. O almofadinha fortão, o engomadinho de topete loiro que foi palestrar na faculdade ontem, o tal do Enrico está deitado na cama completamente nu. Sua bunda é enorme, as coxas são grossas. Ele se vira e vejo o seu abdômen trincado, dividido e o peitoral é... fascinante. E tem pelinhos, aqueles bem ralinhos por todo o peito.
A pintura de um Deus grego.
Seus olhos estão estreitos, deve ter acordado agora. Aliás, todos parecem que acordaram agora, e nem é madrugada, ainda. Ele boceja e balança a cabeça para despertar, me encara e diz:
— Você?!
— Eu que pergunto, você?
Ele se apoia sobre os travesseiros, seu pau não está completamente duro, nem mole e é bem avantajado. Recosta a cabeça na cabeceira da cama, dobra a perna esquerda e coloca o cotovelo em cima do joelho dobrado.
— Veio participar da brincadeira? — pergunta com uma voz rouca.
— Não mais — viro de costas e saio do quarto.
Noto estar sendo seguido. É o Kauã, que se enrolou num lençol para me seguir pelo corredor do andar de cima do casarão.
— Mano, qual é? É putaria e sei que você gosta. Porra, volta aqui.
Paro antes de descer o primeiro degrau da escada, me viro para encarar Kauã.
— Gosto da putaria com vocês, meus Brothers, não com um estranho — começo a descer e o Kauã me segue.
— O Enrico não é estranho, ele é famoso, o cara da internet e aceitou participar. Ele é muito gente boa
— Porra, Kauã! Gente boa? — grito parando de descer os degraus. — Tem outro cara na cama além dele. O que é isso? Duas garotas e quatro machos. Tem alguém pegando na mangueira de alguém e tenho certeza que não são as garotas.
Volto a descer a escada e ele vem em meu encalço. Começa a tagarelar dizendo que não é anda disso que estou pensando.
— Ah, não? E o que seria?
— É uma orgia e vale tudo nessa hora.
— Ser enrabado por outro cara não vale para mim.
— Seu hipócrita — diz tocando no meu ombro. — Todos sabemos que você era apaixonado pelo Alex. Todos aqui sabem que você foi até o litoral, pagando de machão com uma mulher do lado, quando na verdade você foi tentar alguma coisa com um loirinho bonitinho. Mas deu com a cara na porta, ou melhor, com a cara no punho do namorado do dele — grita cada palavra.
Viro para olha-lo de frente, e antes de sair, dou um forte soco no meio de seu queixo. Ele cai e as pessoas que estavam na festa vem ajuda-lo a levantar. Luís se aproxima e me afasta dele. Neste momento Joseph aparece e bem rápido se aproximar do Kauã que está caído no chão.
— Que merda, Diego! Tá maluco, porra? — grita Luís na minha frente, me segurando.
— Quem esse viado do caralho pensa que é para falar essas merdas para mim, hein? — digo indo para cima do Kauã, mas Luís me segura.
Joseph se levanta, me encara. Seu olhar tem tanta raiva que posso sentir minha pele senso perfurada. Agora entendo o porquê do nosso apelido ser “os lobos”. Joseph parece um lobo preste a abater sua presa. Ele é tão largo quanto um armário. Ele empurra Luís e segura-me pela camisa arrastando-me até a porta. Joseph me joga no chão e diz enraivecido:
— Só não te soco com vontade, porque vou me arrepender depois — aponta para rua. — Agora vai embora e não estraga nossa festa.
De toalha e limpado um filete de sangue, Kauã aparece na porta junto com o Luís. Joseph se aproxima do Kauã, e ao abraça por trás como um urso, e beija sua bochecha. Não é beijo de amigos, e esse abraço mostra que eles são bem mais que isso.
— Que nojo — digo cuspindo o chão e me erguendo.
— Cara! Vocês se pegam? — diz Luís impressionado.
Eles se entreolham com cumplicidade. Vejo nas expressões deles que estão dispostos a assumir o que eu já desconfiava. E lá no fundo, bem lá no fundo, tenho inveja deles, da coragem deles.
— Somos namorados e daí? Tem algum problema, mano? — diz Joseph encarando o Luís.
— Por mim — Luís levanta as mãos. — Tudo bem. Vocês são maiores de idade e não tem problema para mim. Para você — aponta para mim. — Vê problema em nossos amigos se pegarem?
— Vocês são umas bichas ridículas — dou meia volta e ando até o meu carro.
Saio daquela festa, com a raiva me consumindo. Não é só a raiva pelo que aconteceu que me deixa com a cabeça quente, também tem o lance com meus pais, a minha covardia e a sensação de lembrar de um fato que aconteceu a mais de um ano. Toda essa mistura de acontecimentos e lembranças me deixa com o sangue fervendo de raiva, preocupação e ódio. Ódio da vida, de tudo e de todos.
— Que se fodam! — viro a chave na ignição e sigo sem rumo.

Não quero voltar para casa e ter que lidar com a tensão que está naquele lugar. Nem muito menos quero voltar para festa, pedir desculpas para os meus amigos e seguir como se nada tivesse acontecido, não mesmo. Ainda não consigo compreender como dois dos meus melhores amigos, são gays, se pegam e nunca me contaram. Sempre fomos amigos de muitos anos. Dividimos as garotas, nós três antes dos gêmeos se juntarem a nós. Apesar que sempre desconfiei depois de um tempo que os dois andavam juntos demais, sempre fazendo coisas juntos. E agora a confirmação, eles são namorados.  Sinto que fui apunhalado pelas costas.