De viagem marcada.
Quando viajei a
Espanha para passar minhas férias, há um ano, nunca imaginei que aquela seria a
mais impressionante viagem da minha vida. Conheci uma Sevilla diferente da que
tinham me falado. Tudo era encantador.
Mas o cheiro das
laranjeiras que toma conta da cidade alegre da Andaluzia, não foi o único aroma
que me marcou. Foi lá que eu conheci a mulher que me fez perder o sono durante
um ano inteiro. Meses depois, meus amigos ainda me perguntavam o porquê de eu não
ter voltado para reencontra-la, a minha misteriosa espanhola, e a resposta era
simples: ela não queria ser encontrada.
Mesmo que eles não
saibam, não faltaram ocasiões que eu tenha tentado. Voltei à Sevilla, procurei
por todos os lugares onde estivemos juntos, mas nada de encontrar a bela mulher
de cabelos negros e olhos castanhos tão sedutores. E aquele corpo? Até um
eunuco ficaria excitado em vê-la andar na sua frente. Percorri todas as ruas
estreitas do bairro de Santa Cruz até perder o fôlego, e nenhum sinal dela.
Minha obstinação foi tanta que fui até a catedral da cidade e pedi a todos os
santos que me dessem uma ajuda para encontrar aquela danada, e juro que vi as
imagens sacras virarem o rosto, fingindo que o meu pedido não era com eles. Está
tenso o negócio mesmo...
Bom, mas fiquei
falando tanto de minha espanhola que esqueci de me apresentar. Eu me chamo
Thiago Rivas e sou dono de uma empresa alimentícia em ascensão no Brasil. Meu
pai era acionista majoritário da empresa de alimentos Calixto’s e hoje sou eu
quem ocupa essa posição. Somos a empresa que mais cresce nesse ramo. Temos uma
linha diversa de enlatados, congelados e laticínios. Trabalhar duro e com
responsabilidade foi o legado deixado por meu pai. Não podemos oferecer
qualquer porcaria ou produzir de qualquer jeito. Por isso, temos o selo de
excelência em qualidade dos alimentos, e posso me gabar, parte desse sucesso
deve-se a minha criatividade, competência e responsabilidade.
Desta vez, voltarei a
Sevilla a trabalho, mas também não deixarei passar a última oportunidade de reencontrar
essa misteriosa mulher. Será a derradeira tentativa de vê-la, mesmo que seja
ficar apenas na troca de olhares. Intimamente quero toca-la, beija-la e tê-la
em meus braços, nem se for por uma noite apenas.
Dentro do meu
escritório, olho na tela do meu notebook as fotos que tirei na cidade. Sevilla
inspira alegria e carisma, e para mim um pouco de frustração. Abro a única
imagem que tenho da espanhola e seu rosto está parcialmente coberto pelos
cabelos negros. Mesmo assim, lembro-me com exatidão do formato de seu nariz
arrebitado, da boca carnuda e vermelha como rubi... Perco a noção do tempo
admirando sua foto, mas sou puxado para realidade quando o telefone toca.
— Pronto — digo,
ainda meio perdido.
— Thiago, é a mamãe.
Por que não veio almoçar comigo? Você disse que tinha separado um espaço na sua
agenda para falarmos sobre o casamento do seu irmão, que por um acaso também
está aqui comigo...
A voz fina da minha
mãe me tira por completo do meu estado nostálgico.
— Porra, mãe. Eu
esqueci completamente. Desculpe! — passo a mão na testa e fecho os olhos,
pronto para ouvir uma reclamação.
Olho no relógio e
ainda são uma e meia da tarde. Talvez consiga chegar a tempo para o almoço e
rever meu irmão.
— Com exceção do
palavrão, está desculpado. Agora, quero que saia deste maldito escritório e venha
ao restaurante que fica a duas quadras da empresa. Quero ver meus dois filhos
juntos. Isso é um fato raro.
— Ok, dona Margarida.
Já estou indo — levanto com o telefone na mão. — Até já.
Desligo e saio da
minha sala. Passo pela Cléo, a secretária, e digo que talvez não volte mais
hoje e que ela envie o check-in do voo para Sevilla no meu e-mail.
Passar a tarde com
minha mãe e Theo tem sido algo raro depois da morte do meu pai. Meu irmão saiu
de casa e foi morar sozinho, enquanto eu fiquei morando com a minha mãe, apesar
de quase não a ver por conta do trabalho. Sou mais velho que o Theo dois anos, mas
ele se casará primeiro. Tenho mais grana, mas é ele quem viaja e curte mais a
vida. Eu sei que essa não é ordem natural
das coisas, já que sou o mais velho, mas quem se importa com o tradicionalismo?
Eu não ligo. Foi ele quem me fez ir a Sevilla ano passado “para descansar”.
Sempre fomos uma família unida, apesar da distância que o trabalho me impõe.
Dirijo até o
restaurante que minha mãe indicou e estaciono. Da entrada do restaurante, os vejo
ocupando uma mesa perto das janelas, com vista para o jardim. Ando até onde
estão e o Theo se levanta, vindo me abraçar. Sinto muita falta desse abraço de
urso do meu irmão. Nos cumprimentamos e vejo seus olhos brilharem ao me rever.
Temos a mesma altura – exatos 1,83m – mas ele tem cabelos compridos e loiros,
iguais os da minha mãe. Os meus são curtos e castanhos, com um topete. Usamos a
barba por fazer e nossos olhos são verdes iguais ao do nosso pai. Beijo o alto
da cabeça da minha mãe antes de me sentar. Peço desculpas pelo atraso e também pelo
palavrão que falei ao telefone.
— Soube que vai
viajar a Sevilla? Sentiu saudades das espanholas, meu irmão?
Mal sabia ele que era de apenas uma, uma única
espanhola que virou minha vida do avesso
— Desta vez, será a
trabalho, mas quem sabe não visito um daqueles lugares em que elas dançam
flamenco — solto uma piscadela para o Theo e ele sorri de lado.
Lembro que naquela
ocasião nós fizemos toda a Andaluzia pegar fogo. Era a última viagem do meu
irmão como homem solteiro e eu estava de férias, então aproveitamos ao máximo. Quando
conheci a espanhola desconhecida, Theo, milagrosamente não estava ao meu lado.
Ele não acredita nessa minha paixão toda, mas acredita que ela, a espanhola,
exista.
— Vai tentar encontrar
a sua amada? Aquela que só existe na sua cabeça? — diz dona Margarida, com
ironia, quando bebe do seu vinho do porto. Pois é, ela me zoava sobre o assunto.
— Mãe, por favor... —
bufo em desagrado. — Já falei que ela é real, e que irei encontrá-la nessa viagem,
custe o que custar...
— Sabe onde ela mora?
No que trabalha? Telefone, redes sociais? Thiago, meu filho, você não sabe nem
o nome dessa... assombração. Como acha que vai encontrá-la? Por telepatia?
Meu irmão e eu
ficamos de boca aberta com as palavras da minha mãe.
— Tendo a senhora
como mãe, para que inimigos?! — chamo o garçom e peço que traga uma dose do
melhor bourbon da casa.
— Dona Margarida,
acha que não pegou meio pesado com o Thiago? — diz Theo, tomando da sua
cerveja.
— Só quero que seu irmão,
como vocês dizem, caia na real. E se quer namorar alguém, que arrume uma garota
que seja de verdade, não alguém que ele se apaixonou quando estava bêbado.
— Eu lembro bem do
que vi e fiz — cruzo os braços. — A bebida não me derrubou assim.
Eles trocam olhares de
dúvida sobre a minha afirmação. Eu nunca estive tão sóbrio quanto da vez que conheci
e beijei a espanhola. Antes que eu comece a me defender, o meu pedido chega. Decido
que é melhor almoçar tranquilo e, quando eu voltar de viagem, irei mostrar a
todos o quanto estavam errados em achar que a minha espanhola era um fantasma
ou fruto do meu inconsciente. Espero...
Chegando a Sevilla, Espanha...
E tudo está igual há
um ano. Estamos em abril, mês da Festa das Flores, a bendita comemoração em que
a conheci. Decido descansar um pouco por conta da longa viagem e depois, com
calma, começarei a procura-la. Visitarei cada lugar onde há possibilidade de reencontra-la.
Tenho algumas reuniões só para amanhã, portanto o resto do dia de hoje será apenas
o começo da aventura. Mas, antes preciso recarregar as baterias.
####
Saindo do hotel, sigo
direto para o centro. Passo em frente a catedral e faço o sinal da cruz,
seguido de uma prece, pois preciso de toda ajuda possível neste primeiro dia na
Andaluzia. Não sou um homem religioso, mas já que existem tantos santos, um
deles bem que poderia me quebrar um galho, não é? Afinal de contas, encontrar
uma mulher que não sei nem o nome não é tão complicado... Para uma divindade, é
claro.
Paro o carro na
frente de um bar em Santa Cruz e entro, seguindo diretamente para o balcão. Aquele
bairro é cheio de igrejas, ruas estreitas e praças, representando em seus
locais mais conhecidos um pouco da história judaica. Ramón Valdez, o dono do
bar Exprience’s, é um dos amigos que
fiz quando passei por aqui. Ele abriu as portas de seu bar para que meu irmão
fizesse uma pequena despedida de solteiro. É um cara que esbanja simpatia e o
único, entre os mais próximos, que acredita de verdade na existência da minha
mulher misteriosa existe.
— ¿Cómo estás? Hombre incansable y sin miedo!
Ramón me abraça e já
me serve um Rebujito, bebida típica
nesta época do ano.
— Estoy bien, mi amigo! Na medida do
possível.
— Soube por su hermano que voltou a Andaluzia a trabajo, certo? — sorri de lado,
enquanto se senta ao meu lado.
— Sabe bem que não
foi só por isso que voltei. — Olhando nos olhos azuis de Ramón, digo: — Preciso
vê-la novamente e, desta vez, não ficarei só em carícias. Eu a quero para mim.
Ramón solta uma
gargalhada e diz.
— Ela não é uma
propriedade, cabrón! Como reagirão os
habitantes ao ver que um estrangeiro, brasileño,
levou embora a rosa más hermosa de Santa
Cruz?
— Eu sabia que ela
era real! — arregalo os olhos. — Você a conhece, não é mesmo?
Ele sorri de leve,
parecendo debochar da minha surpresa.
— Ora, vamos! Todos
aqui conhecem a Rosa Escarlate. Ela é
a atração das noites na feira de Abril. Quando passa por essas ruas, rosas são
jogadas diante dela, formando um tapete vermelho e as músicas são tocadas em
alto volume para celebrar a sua passagem. Entendeu porque ela não é uma
propriedade? Rosa é de todas as pessoas das ruas de Santa Cruz, e de toda
Sevilla. É patrimônio Andaluz...
Analisando cada
palavra de Ramón, começo a me lembrar da festa. Quando vi a espanhola pela
primeira vez, estava na frente do bar quando uma chuva de rosas vermelhas cobriu
a rua. Foi quando ela apareceu, caminhando por cima das flores segurando a
ponta do vestido. Seus cabelos estavam soltos e brilhavam mais que a noite,
dançando e sorrindo, toda sensual. Quis pegá-la naquela mesma hora e me perder
naquele corpo...
— Oh! — Ramón estala
os dedos na frente dos meus olhos e me puxa das lembranças. — Estava pensando
nela, não é mesmo?
— Por favor, meu
amigo, diga-me: onde posso encontrá-la?
Com os olhos
estreitos, Ramón me fita de cima a baixo e diz.
— Ela irá encontrá-lo...
Se quiser, é claro.
— Eu não gosto desse
tipo de jogo — irritado, bato com força o punho fechado no balcão do bar.
— Se quiser ver a Rosa Escarlate novamente, terá que
aprender a jogar e ser mais esperto que ela. — Ele se vira e segue até a porta
da cozinha. — Ninguém sabe nada sobre essa mulher. Se quiser investigar para
ver se acha algo, vá em frente, mas garanto que não irá descobrir muito além do
que eu já disse.
Ramón some de vista e
me deixa só, perdido nas lembranças que tenho da espanhola. Ela tem um nome,
impossível de esquecer, quase que de uma heroína de história em quadrinhos...
Rosa Escarlate.
Sento em uma das
banquetas, pego o Rebujito que o
Ramón me serviu e bebo um pouco. Ouço uma cantoria vinda do lado de fora e vou
até a janela para olhar. Um grupo de pessoas descia a rua, vindos de uma das
praças que dava em frente ao bar do Ramón.
Eram seis músicos, mais umas dez pessoas, talvez turistas, completando o
“cortejo”. As palmas ditam o ritmo da
música junto com as batidas de uma bulería
tocada pelo violão, cantada pelas mais diversas vozes que tomam as ruas
estreitas do bairro de Santa Cruz. O cortejo para, e os homens que tocam e
cantam formam um círculo. Ao redor deles, as pessoas batem palmas e entoam a
canção junto com os músicos.
Algumas espanholas, trajando
vestidos longos, justos no corpo e cheio de babados, dançam flamenco no centro
do círculo. Observo de dentro do bar cada detalhe da dança e de suas roupas. O
ritmo é contagiante e eu não resisto. Como uma criança, saio do bar e me junto
a roda de dança flamenca. É inevitável não começar a bater o pé ou tamborilar
os dedos na perna. Não sei nada de dança, nem por onde começar, mas admiro cada
gesto, a maneira como parecem livres e felizes, festejando a vida.
De repente, as vozes
se calam e só um dos músicos cantarola, um som sensual e ligeiramente acelerado,
como deve ser uma autêntica bulería. Todos
os olhares se voltam para outra ponta do círculo onde um caminho é aberto e uma
mulher, vestida de vermelho e preto aparece, segurando a ponta de seu vestido.
De longe, meus olhos não a reconhecem, mas meu coração palpita, acelera e, no
fundo, sei que a minha busca terminou. Atravesso a multidão à minha frente para
enxerga-la melhor.
Seus olhos estão
cobertos, parcialmente, pelos cabelos negros e brilhantes. Ela dança mostrando
toda a sensualidade que me excitou desde que a vi pela primeira vez. Vejo seu
peito subir e descer por conta da respiração, mas ela não perde o fôlego. Parece
incansável. A cada volta da música, ela joga as mãos e a cabeça para trás,
fazendo uma coreografia hipnotizante. Os outros músicos que só seguravam os
violões começam a bater palma e um deles solta um grito, como se estivesse
marcando o compasso da canção. Tudo isso é um espetáculo que estou tendo o
privilégio de ver com os meus próprios olhos.
Quando a espanhola
misteriosa levanta a cabeça e seus cabelos são jogados para trás, vejo seu
rosto inesquecível. Os olhos castanhos, sua boca carnuda sorrindo, desinibida.
Por impulso, entro no círculo, mas não me aproximo muito dela. Começo a dar voltas,
tentando acompanha-la na dança, completamente desengonçado e cheio de tesão.
Mas não me importava.
A razão pela qual eu voltei a Sevilla estava dançando na minha frente, a mulher
que me fez por várias noites perder o sono a poucos metros de mim... Não seria
o meu pau duro por ela, marcando a calça, que me faria perder a magia daquele
momento.
Eu estava, mais uma
vez, enredado na sedução arrebatadora daquela mulher. Fui sugado por seus olhos
e viajei em seus lábios. Era ela! Era a
Rosa Escarlate. A minha espanhola.
Devagar, volto para
onde estava, mas sou empurrado, propositalmente, para o centro do círculo novamente.
Olho de lado e vejo o sacana do Ramón. Não sei se o agradeço ou o mando para o
inferno. Eu quero tocá-la, mas me mantenho à uma distância segura, para não a
afugentar. Mas ela me cerca, encosta as mãos na minha cintura e sinto seu nariz
tocar, de leve, meu pescoço. Desejei estar só, sem aquela multidão por perto
para poder rasgar aquele vestido, contemplar toda sua nudez e vê-la gemer,
quando eu mergulhar dentro dela.
— ¿Qué se puede volver a Sevilla?
— Você — digo sem rodeios.
— Eu quero você. Por isso, voltei a Sevilla.
Ela dá a volta e para
em minha frente.
— ¿Se olvida de mis besos?
Digo que sim com a
cabeça e seguro seu pulso. Ela para a dança e olha, com indiferença, para minha
mão segurando seu pulso.
— Disculpe — digo, envergonhado. Nunca
tratei uma mulher assim, mas ela me deixava louco e tirava o pior de mim.
— Está desculpado,
estrangeiro — diz em um sussurro e num português impecável. Ela se aproxima e
suavemente beija meus lábios e me empurra, lhe dando espaço para que termine a sua
dança.
Eu sabia que ela era
tão real quanto a ereção que tenho no meio das coxas. Penso em como provaria
para meu irmão e para minha mãe que a maldita e gostosa espanhola realmente
existe... Tateio no bolso da calça, puxo o celular e começo a gravar a última
parte da dança de Rosa Escarlate. Gravo
até que os aplausos cessem e, por fim, envio para meu irmão com a legenda: Eu não estou louco. Ela não é uma
assombração. Ela é real e perfeita.
Quando olho ao meu redor,
vejo a multidão se dissipar e mais uma vez ela desaparece.
— Isso só pode ser
brincadeira!
A festa das flores...
É, na verdade, uma
das manifestações culturais mais legais que já participei. Afinal, foi ela que
trouxe a deliciosa da Rosa para a minha vida. Sei que pareço um bobo apaixonado
cheio de pensamentos clichês falando desse jeito, sem noção do que é, na
verdade, o tal do amor que todos esperam. Contudo, estou entregue a paixão
louca que sinto por essa mulher.
Sentado à beira da
piscina do hotel onde estou hospedado, com o jornal local aberto, vejo as fotos
da festa e reparo em cada detalhe. Talvez encontre o rosto de Rosa Escarlate,
em meio a tantos outros nas imagens. Essa obsessão pode acabar comigo, mas, se
eu puder ter essa mulher em meus braços, terá valido a pena.
Como dizem no Brasil:
“estou com os quatro pneus arriados por essa mulher”. Se minha mãe me visse
agora, com certeza pediria uma margarita
e diria: eu avisei que essa sujeitinha te
viraria a cabeça do avesso. Fecho o jornal e jogo a cabeça para trás, os olhos
fechados. Tento afastar a voz autoritária da dona Margarida de dentro da minha
cabeça.
— Isso não é normal,
Thiago. Isso não é normal... — digo, baixinho.
— Señor, Riva — diz um dos funcionários do
hotel se aproximando com um telefone na mão. — Teléfono para usted.
— Gracias — digo, pegando o telefone.
Deixei o número do
hotel onde estou em Sevilla com todos no Brasil, para me localizarem caso seja
necessário. Por que não me ligaram no celular? Daí eu me lembro que o deixei
dentro do quarto. Ontem cheguei tão aturdido que joguei o celular em algum
lugar no quarto e até aquele momento nem tinha me lembrado dele.
Onde estou com a
cabeça? Esta é uma regra básica: um empresário nunca fica sem celular. Caramba,
até nisso estou sendo negligente. Culpa da paixão...
— Thiago, meu irmão!
O que aconteceu? Por que não atendeu o celular? — A voz de Theo vai de
preocupada à curiosa em poucas palavras.
— Foi mal, cara —
esfrego os olhos. — Depois de ontem, parece que fiquei meio entorpecido. Essa
mulher é uma droga pior que cocaína.
Ele fica em silêncio,
que dura alguns segundos antes dele desatar a rir.
— Você só pode estar
de sacanagem?! — gargalha. — Tem noção do que acabou de falar? Você acabou de
admitir que ela te faz mal...
— Sacanagem é o que
ela faz comigo. E não, não é desse jeito que você está pensando — coço a nuca.
— De que jeito seria?
Ah, conta outra, cara!
Ele tem razão. Viajar
até a Europa para encontrar uma mulher que até então não sabia nem o nome.
Realmente, eu não estou normal.
— Você viu o vídeo,
Theo! Ela existe. Ela é incrível e todos homens caem de joelhos por ela.
Lembro-me de como
fiquei ao tê-la bem perto de mim novamente. Parecia que o tempo tinha parado e
não enxergava mais ninguém ao meu redor. Somente ela.
— O que pensa em
fazer? Digo, depois de vê-la ontem, dançando na sua frente, depois que ela habló con usted, o que pensa em fazer?
Respiro fundo.
— Hoje começa a Festa
das Flores. Voltarei ao bairro de Santa Cruz, e nem que eu precise varar a
madrugada, vou encontrá-la.
— Essa sua obstinação
é caso para um psiquiatra. Você está doidão, meu irmão, maluco total. Só espero
que não se meta em alguma enrascada indo atrás dessa mulher...
— Sei me cuidar,
irmão. Agora, se me der licença — levanto da cadeira e ando até a recepção do
hotel — preciso desligar. Tenho um dia cheio. Até breve, Theo.
— ¡Hasta luego! — ele se despede, em
espanhol, tirando sarro da minha situação.
Sorrio e desligo.
Entrego o telefone a recepcionista e sigo para o meu quarto. Antes de ir à
festa, preciso resolver alguns assuntos do trabalho. Tenho uma reunião
importante com importadores da região. Sorte nos negócios, até tenho, já no
amor... é algo que precisa ser estudado pela NASA.
####
Já a noite, caminho
pelas ruas estreitas e coloridas de Santa Cruz, vendo vários grupos tocando músicas
típicas enquanto algumas espanholas dançam. Mas nenhuma delas é a minha.
Na praça Dona Elvira,
ergo meus olhos para ver as estrelas. Sento em um dos bancos decorados com
azulejos e fico observando quem passa. Casais apaixonados trocando carícias,
mulheres esperando seus parceiros para um encontro e vice e versa, amigos
sentados em mesas de um bar qualquer bebendo e falando como farão para agradar
suas esposas que estão em casa. Ver tudo isso me faz chegar à conclusão de que meu
destino é viver solteiro, pois não me encaixo em nenhumas dessas vidas.
Ouço uma música vinda
do começo da praça, e as pessoas dali começam a bater palmas, seguindo o ritmo
das batidas dos tambores. Respiro fundo e fecho os olhos, começando a crer que
foi um erro vir até aqui, pois cada espanhola que vejo dançando nessas rodas,
acho ser Rosa. Esfrego os olhos e quando os abro, mesmo que um pouco embaçada,
a cor vermelha viva enche a minha visão. Ergo a cabeça devagar e fito seu rosto
marcante diante de mim. Uma mecha de seu cabelo forma uma meia lua na sua testa
e, observando com mais atenção, vejo uma pinta do lado do seu olho direito. Ela
está com o cabelos presos e rosas vermelhas enfeitam o alto de sua cabeça. Com
uma das mãos na cintura, ela se aproxima de mim mais uma vez.
— O que quer?
Enlouquecer-me? Se for isso, já conseguiu. Já estou rendido, caído aos seus
pés. Completamente de quatro por você — digo
a última palavra com raiva, mas de mim mesmo.
Rosa Escarlate se
aproxima e senta ao meu lado, ignorando o fato de eu estar pronto para
sequestra-la e leva-la para longe de toda aquela multidão. Transforma-la em só
minha. Ela ignora a todos, os olhos fixos nos meus. Respiro fundo e torço para
que meus instintos de homem primitivo não aflorem. Sentir seu perfume é que
como se eu tomasse uma injeção de excitação.
— Por favor, Rosa...
não...
Ela toca meu rosto e
me beija suavemente na bochecha. Fico parado, não movo um músculo do meu corpo.
— Só posso ser sua
por uma noite, e nada mais — sussurra em meu ouvido.
— Por que? — viro o meu
rosto para encara-la.
— Porque o meu lugar
é aqui, em Sevilla.
— Tenho tantas
perguntas... Eu passei todo esse ano pensando em como te reencontrar, em como
te convencer a ir embora comigo. Pensei em até te levar à força se fosse
preciso...
Ela sorri.
— Está rindo do
quanto eu sou idiota? — faço menção de me levantar, mas ela me segura pelo
braço.
— Perdona-me se achou que estava rindo de
você. Eu nunca havia me enamorado por un
hombre come usted. És um estrangeiro que roubou meu coração.
Arregalo os olhos com
a declaração repentina de Rosa.
— Por que nunca me
disse nem seu nome?
— Por medo.
— Medo?
Ela abaixa a cabeça.
Fica triste de repente, me deixando confuso.
— Minha família nunca
permitiria meu relacionamento com um estrangeiro. Meus cinco irmãos, me padre y me madre, nunca aceitariam
que sua única filha se encantasse por
um homem de fora.
“Em que século
estamos?”
— Isso é ridículo,
Rosa. Por Deus! — abaixo a cabeça com a mão na testa que já está suada devido
ao meu nervosismo.
Ela segura minha mão
e diz:
— Eu tenho uma foto
sua. Procurei saber de você com a ajuda de Ramón...
Aquele judeu fajuto, filho da mãe! Sabia de
tudo sobre a Rosa e não me contou.
— Vou matar aquele
judeu mexicano de merda!
— Eu que pedi para
que ele não contasse nada. Ele, o
Ramón, me deu uma foto sua, quando você tinha ido embora. Disse que tirou da
internet de um site sobre negócios e empresas... — Ela respira fundo, está
emocionada.
Seguro sua mão e olho
no fundo de seus olhos castanhos.
— Por que esse
mistério? Por que o jogo? — franzo a testa, querendo a verdade.
— Eu vivo presa em um
palacete. Não tenho direto nem de sair sozinha. As mulheres de casa não podem
ter contato com nenhum homem de fora. A não ser que meu pai e meus irmãos
permitam — Ela respira fundo e aflita, entrelaça as mãos. — Por isso, eu fiz um
acordo com meu pai: que sairia com Carlota, minha prima, uma vez por ano para
participar da Festa das Flores. Ele relutou, mas depois cedeu. Mesmo com sua
dureza, meu pai, às vezes, mostra ter um coração maleável. Enfim, com a ajuda
dessa minha prima, decidi criar esse personagem que só aparece na época da Festa.
Só para dançar, compreendes? Mas as coisas cresceram e acabei virando uma fantasia dos
homens de Sevilla e dos estrangeiros. A misteriosa Rosa Escarlate, a espanhola.
— Ela segura as minhas mãos. — Tudo estava bem. Meu coração não sofria pelos
homens. Eu, inclusive me vingava daqueles que eram como meu pai, deixando-os
caídos aos meus pés... Até que você apareceu... — Ela solta minha mão e abaixa
a cabeça.
Balanço a cabeça sem
entender onde ela quer chegar. Passo as mãos nos cabelos, estou confuso...
— Deixa-me ver se
entendi... — levanto o dedo indicador — Você tem um pai e irmãos que não te
deixam ser quem você é. Tratam-na como um objeto. Não querem que tenha um
relacionamento com outro homem que não seja aquele que eles escolherem... É
isso mesmo?! — ela balança a cabeça, confirmando. — Seu nome é Rosa ou também é
falso?
Ela sorri, mas de um
jeito triste. Tocando meu queixo, ela responde:
— Rosalinda Herrera
Santbañes.
— Você é filha do
mafioso Herrera Santbañes, o El Toro? — digo, estreitando o olhar.
Espantada por saber
que eu sei quem é o seu pai, ela diz que sim.
— De onde conhece mi padre?
— Seu pai é famoso.
No Brasil, ele é uma lenda do crime internacional.
Rosa fica séria. Com
certeza se incomodou com o que eu disse.
— Mi padre não é um monstro criminoso como
todos dizem. — Ela se levanta do banco. — Foi um erro ter lhe contado tudo.
Rosalinda sai pisando
duro. Está chateada. E eu, sem pestanejar, a sigo. Depois de toda essa
revelação, de descobrir que ela também está apaixonada por mim, não vou deixar
que se vá de uma vez por todas. Não mesmo.
Seguro seu braço e a
puxo para perto. Ela se debate, mas logo aquieta. Nos encaramos por alguns
segundos e o beijo é inevitável. Sentir meus lábios nos seus é como se toda
minha vida dependesse daquele contato. Um beijo coberto de paixão e excitação.
Sinto-me vivo. Os
lábios de Rosa são quentes, seu beijo me faz ferver. Ela se rende ao que
sentimos, finalmente, e eu a seguro com força pela cintura. Mordisco seus
lábios, enquanto ela prende minha cabeça com as mãos para que eu não me
afaste. Minutos de puro desejo
representados em um único beijo.
— Vem comigo para o
Brasil — digo, com os lábios próximos aos dela.
— Já disse que não
posso. Não me coloque nessa situação...
Calo-a com mais um
beijo, mas ela me afasta.
— Isso é um costume
medieval. Estamos no século vinte e um. As mulheres não são objetos. Elas têm
vida própria e podem fazer o que quiserem, não são propriedades. Você pode ser
o que quiser e viver da maneira que bem entender.
Ela, ainda segurando
minha cabeça entre as mãos, diz, olhando em meus olhos:
— Por isso a Rosa Escarlate
existe. Ela representa cada mulher que tem a voz, os desejos e ambições calados
por um machismo que diz protegê-las. Eu só me sinto livre quando estou vestida
de Rosa Escarlate.
A vontade de tira-la
dessa tirania absurda só aumenta dentro de mim.
— Para proteger, não
precisa reprimir— digo, beijando sua testa. — Eles não te protegem, te oprimem.
Isso não é vida, minha linda — passo o polegar direito no seu rosto e limpo uma
lágrima que desce.
— Eu queria ter a
coragem que a Rosa Escarlate tem — ela me abraça e repousa sua cabeça em meu
peito.
— Você tem essa
coragem, minha espanhola — abraço Rosalinda com força. Eu quero protegê-la,
para sempre.
Ela ainda relutou em
vir para o hotel, mas como promessa que fez a si mesma de passar uma noite
comigo não podia ser quebrada, ela veio.
C O N T I N U A...