sábado, 22 de outubro de 2016



De viagem marcada.

Quando viajei a Espanha para passar minhas férias, há um ano, nunca imaginei que aquela seria a mais impressionante viagem da minha vida. Conheci uma Sevilla diferente da que tinham me falado. Tudo era encantador.
Mas o cheiro das laranjeiras que toma conta da cidade alegre da Andaluzia, não foi o único aroma que me marcou. Foi lá que eu conheci a mulher que me fez perder o sono durante um ano inteiro. Meses depois, meus amigos ainda me perguntavam o porquê de eu não ter voltado para reencontra-la, a minha misteriosa espanhola, e a resposta era simples: ela não queria ser encontrada.
Mesmo que eles não saibam, não faltaram ocasiões que eu tenha tentado. Voltei à Sevilla, procurei por todos os lugares onde estivemos juntos, mas nada de encontrar a bela mulher de cabelos negros e olhos castanhos tão sedutores. E aquele corpo? Até um eunuco ficaria excitado em vê-la andar na sua frente. Percorri todas as ruas estreitas do bairro de Santa Cruz até perder o fôlego, e nenhum sinal dela. Minha obstinação foi tanta que fui até a catedral da cidade e pedi a todos os santos que me dessem uma ajuda para encontrar aquela danada, e juro que vi as imagens sacras virarem o rosto, fingindo que o meu pedido não era com eles. Está tenso o negócio mesmo...
Bom, mas fiquei falando tanto de minha espanhola que esqueci de me apresentar. Eu me chamo Thiago Rivas e sou dono de uma empresa alimentícia em ascensão no Brasil. Meu pai era acionista majoritário da empresa de alimentos Calixto’s e hoje sou eu quem ocupa essa posição. Somos a empresa que mais cresce nesse ramo. Temos uma linha diversa de enlatados, congelados e laticínios. Trabalhar duro e com responsabilidade foi o legado deixado por meu pai. Não podemos oferecer qualquer porcaria ou produzir de qualquer jeito. Por isso, temos o selo de excelência em qualidade dos alimentos, e posso me gabar, parte desse sucesso deve-se a minha criatividade, competência e responsabilidade.
Desta vez, voltarei a Sevilla a trabalho, mas também não deixarei passar a última oportunidade de reencontrar essa misteriosa mulher. Será a derradeira tentativa de vê-la, mesmo que seja ficar apenas na troca de olhares. Intimamente quero toca-la, beija-la e tê-la em meus braços, nem se for por uma noite apenas.
Dentro do meu escritório, olho na tela do meu notebook as fotos que tirei na cidade. Sevilla inspira alegria e carisma, e para mim um pouco de frustração. Abro a única imagem que tenho da espanhola e seu rosto está parcialmente coberto pelos cabelos negros. Mesmo assim, lembro-me com exatidão do formato de seu nariz arrebitado, da boca carnuda e vermelha como rubi... Perco a noção do tempo admirando sua foto, mas sou puxado para realidade quando o telefone toca.
— Pronto — digo, ainda meio perdido.
— Thiago, é a mamãe. Por que não veio almoçar comigo? Você disse que tinha separado um espaço na sua agenda para falarmos sobre o casamento do seu irmão, que por um acaso também está aqui comigo...
A voz fina da minha mãe me tira por completo do meu estado nostálgico.
— Porra, mãe. Eu esqueci completamente. Desculpe! — passo a mão na testa e fecho os olhos, pronto para ouvir uma reclamação.
Olho no relógio e ainda são uma e meia da tarde. Talvez consiga chegar a tempo para o almoço e rever meu irmão.
— Com exceção do palavrão, está desculpado. Agora, quero que saia deste maldito escritório e venha ao restaurante que fica a duas quadras da empresa. Quero ver meus dois filhos juntos. Isso é um fato raro.
— Ok, dona Margarida. Já estou indo — levanto com o telefone na mão. — Até já.
Desligo e saio da minha sala. Passo pela Cléo, a secretária, e digo que talvez não volte mais hoje e que ela envie o check-in do voo para Sevilla no meu e-mail.
Passar a tarde com minha mãe e Theo tem sido algo raro depois da morte do meu pai. Meu irmão saiu de casa e foi morar sozinho, enquanto eu fiquei morando com a minha mãe, apesar de quase não a ver por conta do trabalho. Sou mais velho que o Theo dois anos, mas ele se casará primeiro. Tenho mais grana, mas é ele quem viaja e curte mais a vida. Eu sei que essa não é ordem natural das coisas, já que sou o mais velho, mas quem se importa com o tradicionalismo? Eu não ligo. Foi ele quem me fez ir a Sevilla ano passado “para descansar”. Sempre fomos uma família unida, apesar da distância que o trabalho me impõe.
Dirijo até o restaurante que minha mãe indicou e estaciono. Da entrada do restaurante, os vejo ocupando uma mesa perto das janelas, com vista para o jardim. Ando até onde estão e o Theo se levanta, vindo me abraçar. Sinto muita falta desse abraço de urso do meu irmão. Nos cumprimentamos e vejo seus olhos brilharem ao me rever. Temos a mesma altura – exatos 1,83m – mas ele tem cabelos compridos e loiros, iguais os da minha mãe. Os meus são curtos e castanhos, com um topete. Usamos a barba por fazer e nossos olhos são verdes iguais ao do nosso pai. Beijo o alto da cabeça da minha mãe antes de me sentar. Peço desculpas pelo atraso e também pelo palavrão que falei ao telefone.
— Soube que vai viajar a Sevilla? Sentiu saudades das espanholas, meu irmão?
Mal sabia ele que era de apenas uma, uma única espanhola que virou minha vida do avesso
— Desta vez, será a trabalho, mas quem sabe não visito um daqueles lugares em que elas dançam flamenco — solto uma piscadela para o Theo e ele sorri de lado.
Lembro que naquela ocasião nós fizemos toda a Andaluzia pegar fogo. Era a última viagem do meu irmão como homem solteiro e eu estava de férias, então aproveitamos ao máximo. Quando conheci a espanhola desconhecida, Theo, milagrosamente não estava ao meu lado. Ele não acredita nessa minha paixão toda, mas acredita que ela, a espanhola, exista.
— Vai tentar encontrar a sua amada? Aquela que só existe na sua cabeça? — diz dona Margarida, com ironia, quando bebe do seu vinho do porto. Pois é, ela me zoava sobre o assunto.
— Mãe, por favor... — bufo em desagrado. — Já falei que ela é real, e que irei encontrá-la nessa viagem, custe o que custar...
— Sabe onde ela mora? No que trabalha? Telefone, redes sociais? Thiago, meu filho, você não sabe nem o nome dessa... assombração. Como acha que vai encontrá-la? Por telepatia?
Meu irmão e eu ficamos de boca aberta com as palavras da minha mãe.
— Tendo a senhora como mãe, para que inimigos?! — chamo o garçom e peço que traga uma dose do melhor bourbon da casa.
— Dona Margarida, acha que não pegou meio pesado com o Thiago? — diz Theo, tomando da sua cerveja.
— Só quero que seu irmão, como vocês dizem, caia na real. E se quer namorar alguém, que arrume uma garota que seja de verdade, não alguém que ele se apaixonou quando estava bêbado.
— Eu lembro bem do que vi e fiz — cruzo os braços. — A bebida não me derrubou assim.

Eles trocam olhares de dúvida sobre a minha afirmação. Eu nunca estive tão sóbrio quanto da vez que conheci e beijei a espanhola. Antes que eu comece a me defender, o meu pedido chega. Decido que é melhor almoçar tranquilo e, quando eu voltar de viagem, irei mostrar a todos o quanto estavam errados em achar que a minha espanhola era um fantasma ou fruto do meu inconsciente. Espero...


Chegando a Sevilla, Espanha...
E tudo está igual há um ano. Estamos em abril, mês da Festa das Flores, a bendita comemoração em que a conheci. Decido descansar um pouco por conta da longa viagem e depois, com calma, começarei a procura-la. Visitarei cada lugar onde há possibilidade de reencontra-la. Tenho algumas reuniões só para amanhã, portanto o resto do dia de hoje será apenas o começo da aventura. Mas, antes preciso recarregar as baterias.
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Saindo do hotel, sigo direto para o centro. Passo em frente a catedral e faço o sinal da cruz, seguido de uma prece, pois preciso de toda ajuda possível neste primeiro dia na Andaluzia. Não sou um homem religioso, mas já que existem tantos santos, um deles bem que poderia me quebrar um galho, não é? Afinal de contas, encontrar uma mulher que não sei nem o nome não é tão complicado... Para uma divindade, é claro.  
Paro o carro na frente de um bar em Santa Cruz e entro, seguindo diretamente para o balcão. Aquele bairro é cheio de igrejas, ruas estreitas e praças, representando em seus locais mais conhecidos um pouco da história judaica. Ramón Valdez, o dono do bar Exprience’s, é um dos amigos que fiz quando passei por aqui. Ele abriu as portas de seu bar para que meu irmão fizesse uma pequena despedida de solteiro. É um cara que esbanja simpatia e o único, entre os mais próximos, que acredita de verdade na existência da minha mulher misteriosa existe.
¿Cómo estás? Hombre incansable y sin miedo!
Ramón me abraça e já me serve um Rebujito, bebida típica nesta época do ano.
Estoy bien, mi amigo! Na medida do possível.
— Soube por su hermano que voltou a Andaluzia a trabajo, certo? — sorri de lado, enquanto se senta ao meu lado.
— Sabe bem que não foi só por isso que voltei. — Olhando nos olhos azuis de Ramón, digo: — Preciso vê-la novamente e, desta vez, não ficarei só em carícias. Eu a quero para mim.
Ramón solta uma gargalhada e diz.
— Ela não é uma propriedade, cabrón! Como reagirão os habitantes ao ver que um estrangeiro, brasileño, levou embora a rosa más hermosa de Santa Cruz?
— Eu sabia que ela era real! — arregalo os olhos. — Você a conhece, não é mesmo?
Ele sorri de leve, parecendo debochar da minha surpresa.
— Ora, vamos! Todos aqui conhecem a Rosa Escarlate. Ela é a atração das noites na feira de Abril. Quando passa por essas ruas, rosas são jogadas diante dela, formando um tapete vermelho e as músicas são tocadas em alto volume para celebrar a sua passagem. Entendeu porque ela não é uma propriedade? Rosa é de todas as pessoas das ruas de Santa Cruz, e de toda Sevilla. É patrimônio Andaluz...
Analisando cada palavra de Ramón, começo a me lembrar da festa. Quando vi a espanhola pela primeira vez, estava na frente do bar quando uma chuva de rosas vermelhas cobriu a rua. Foi quando ela apareceu, caminhando por cima das flores segurando a ponta do vestido. Seus cabelos estavam soltos e brilhavam mais que a noite, dançando e sorrindo, toda sensual. Quis pegá-la naquela mesma hora e me perder naquele corpo...
— Oh! — Ramón estala os dedos na frente dos meus olhos e me puxa das lembranças. — Estava pensando nela, não é mesmo?
— Por favor, meu amigo, diga-me: onde posso encontrá-la?
Com os olhos estreitos, Ramón me fita de cima a baixo e diz.
— Ela irá encontrá-lo... Se quiser, é claro.
— Eu não gosto desse tipo de jogo — irritado, bato com força o punho fechado no balcão do bar.
— Se quiser ver a Rosa Escarlate novamente, terá que aprender a jogar e ser mais esperto que ela. — Ele se vira e segue até a porta da cozinha. — Ninguém sabe nada sobre essa mulher. Se quiser investigar para ver se acha algo, vá em frente, mas garanto que não irá descobrir muito além do que eu já disse.
Ramón some de vista e me deixa só, perdido nas lembranças que tenho da espanhola. Ela tem um nome, impossível de esquecer, quase que de uma heroína de história em quadrinhos...
Rosa Escarlate.
Sento em uma das banquetas, pego o Rebujito que o Ramón me serviu e bebo um pouco. Ouço uma cantoria vinda do lado de fora e vou até a janela para olhar. Um grupo de pessoas descia a rua, vindos de uma das praças que dava em frente ao bar do Ramón.  Eram seis músicos, mais umas dez pessoas, talvez turistas, completando o “cortejo”.  As palmas ditam o ritmo da música junto com as batidas de uma bulería tocada pelo violão, cantada pelas mais diversas vozes que tomam as ruas estreitas do bairro de Santa Cruz. O cortejo para, e os homens que tocam e cantam formam um círculo. Ao redor deles, as pessoas batem palmas e entoam a canção junto com os músicos.
Algumas espanholas, trajando vestidos longos, justos no corpo e cheio de babados, dançam flamenco no centro do círculo. Observo de dentro do bar cada detalhe da dança e de suas roupas. O ritmo é contagiante e eu não resisto. Como uma criança, saio do bar e me junto a roda de dança flamenca. É inevitável não começar a bater o pé ou tamborilar os dedos na perna. Não sei nada de dança, nem por onde começar, mas admiro cada gesto, a maneira como parecem livres e felizes, festejando a vida.
De repente, as vozes se calam e só um dos músicos cantarola, um som sensual e ligeiramente acelerado, como deve ser uma autêntica bulería. Todos os olhares se voltam para outra ponta do círculo onde um caminho é aberto e uma mulher, vestida de vermelho e preto aparece, segurando a ponta de seu vestido. De longe, meus olhos não a reconhecem, mas meu coração palpita, acelera e, no fundo, sei que a minha busca terminou. Atravesso a multidão à minha frente para enxerga-la melhor.
Seus olhos estão cobertos, parcialmente, pelos cabelos negros e brilhantes. Ela dança mostrando toda a sensualidade que me excitou desde que a vi pela primeira vez. Vejo seu peito subir e descer por conta da respiração, mas ela não perde o fôlego. Parece incansável. A cada volta da música, ela joga as mãos e a cabeça para trás, fazendo uma coreografia hipnotizante. Os outros músicos que só seguravam os violões começam a bater palma e um deles solta um grito, como se estivesse marcando o compasso da canção. Tudo isso é um espetáculo que estou tendo o privilégio de ver com os meus próprios olhos.
Quando a espanhola misteriosa levanta a cabeça e seus cabelos são jogados para trás, vejo seu rosto inesquecível. Os olhos castanhos, sua boca carnuda sorrindo, desinibida. Por impulso, entro no círculo, mas não me aproximo muito dela. Começo a dar voltas, tentando acompanha-la na dança, completamente desengonçado e cheio de tesão.
Mas não me importava. A razão pela qual eu voltei a Sevilla estava dançando na minha frente, a mulher que me fez por várias noites perder o sono a poucos metros de mim... Não seria o meu pau duro por ela, marcando a calça, que me faria perder a magia daquele momento.
Eu estava, mais uma vez, enredado na sedução arrebatadora daquela mulher. Fui sugado por seus olhos e viajei em seus lábios. Era ela! Era a Rosa Escarlate. A minha espanhola.
Devagar, volto para onde estava, mas sou empurrado, propositalmente, para o centro do círculo novamente. Olho de lado e vejo o sacana do Ramón. Não sei se o agradeço ou o mando para o inferno. Eu quero tocá-la, mas me mantenho à uma distância segura, para não a afugentar. Mas ela me cerca, encosta as mãos na minha cintura e sinto seu nariz tocar, de leve, meu pescoço. Desejei estar só, sem aquela multidão por perto para poder rasgar aquele vestido, contemplar toda sua nudez e vê-la gemer, quando eu mergulhar dentro dela.
¿Qué se puede volver a Sevilla?
— Você — digo sem rodeios. — Eu quero você. Por isso, voltei a Sevilla.
Ela dá a volta e para em minha frente.
¿Se olvida de mis besos?
Digo que sim com a cabeça e seguro seu pulso. Ela para a dança e olha, com indiferença, para minha mão segurando seu pulso.
Disculpe — digo, envergonhado. Nunca tratei uma mulher assim, mas ela me deixava louco e tirava o pior de mim.
— Está desculpado, estrangeiro — diz em um sussurro e num português impecável. Ela se aproxima e suavemente beija meus lábios e me empurra, lhe dando espaço para que termine a sua dança.
Eu sabia que ela era tão real quanto a ereção que tenho no meio das coxas. Penso em como provaria para meu irmão e para minha mãe que a maldita e gostosa espanhola realmente existe... Tateio no bolso da calça, puxo o celular e começo a gravar a última parte da dança de Rosa Escarlate. Gravo até que os aplausos cessem e, por fim, envio para meu irmão com a legenda: Eu não estou louco. Ela não é uma assombração. Ela é real e perfeita.
Quando olho ao meu redor, vejo a multidão se dissipar e mais uma vez ela desaparece.
— Isso só pode ser brincadeira!

A festa das flores...
É, na verdade, uma das manifestações culturais mais legais que já participei. Afinal, foi ela que trouxe a deliciosa da Rosa para a minha vida. Sei que pareço um bobo apaixonado cheio de pensamentos clichês falando desse jeito, sem noção do que é, na verdade, o tal do amor que todos esperam. Contudo, estou entregue a paixão louca que sinto por essa mulher.
Sentado à beira da piscina do hotel onde estou hospedado, com o jornal local aberto, vejo as fotos da festa e reparo em cada detalhe. Talvez encontre o rosto de Rosa Escarlate, em meio a tantos outros nas imagens. Essa obsessão pode acabar comigo, mas, se eu puder ter essa mulher em meus braços, terá valido a pena.
Como dizem no Brasil: “estou com os quatro pneus arriados por essa mulher”. Se minha mãe me visse agora, com certeza pediria uma margarita e diria: eu avisei que essa sujeitinha te viraria a cabeça do avesso. Fecho o jornal e jogo a cabeça para trás, os olhos fechados. Tento afastar a voz autoritária da dona Margarida de dentro da minha cabeça.
— Isso não é normal, Thiago. Isso não é normal... — digo, baixinho.
Señor, Riva — diz um dos funcionários do hotel se aproximando com um telefone na mão. — Teléfono para usted.
— Gracias — digo, pegando o telefone.
Deixei o número do hotel onde estou em Sevilla com todos no Brasil, para me localizarem caso seja necessário. Por que não me ligaram no celular? Daí eu me lembro que o deixei dentro do quarto. Ontem cheguei tão aturdido que joguei o celular em algum lugar no quarto e até aquele momento nem tinha me lembrado dele.
Onde estou com a cabeça? Esta é uma regra básica: um empresário nunca fica sem celular. Caramba, até nisso estou sendo negligente. Culpa da paixão...
— Thiago, meu irmão! O que aconteceu? Por que não atendeu o celular? — A voz de Theo vai de preocupada à curiosa em poucas palavras.
— Foi mal, cara — esfrego os olhos. — Depois de ontem, parece que fiquei meio entorpecido. Essa mulher é uma droga pior que cocaína.
Ele fica em silêncio, que dura alguns segundos antes dele desatar a rir.
— Você só pode estar de sacanagem?! — gargalha. — Tem noção do que acabou de falar? Você acabou de admitir que ela te faz mal...
— Sacanagem é o que ela faz comigo. E não, não é desse jeito que você está pensando — coço a nuca.
— De que jeito seria? Ah, conta outra, cara!
Ele tem razão. Viajar até a Europa para encontrar uma mulher que até então não sabia nem o nome. Realmente, eu não estou normal.
— Você viu o vídeo, Theo! Ela existe. Ela é incrível e todos homens caem de joelhos por ela.
Lembro-me de como fiquei ao tê-la bem perto de mim novamente. Parecia que o tempo tinha parado e não enxergava mais ninguém ao meu redor. Somente ela.
— O que pensa em fazer? Digo, depois de vê-la ontem, dançando na sua frente, depois que ela habló con usted, o que pensa em fazer?
Respiro fundo.
— Hoje começa a Festa das Flores. Voltarei ao bairro de Santa Cruz, e nem que eu precise varar a madrugada, vou encontrá-la.
— Essa sua obstinação é caso para um psiquiatra. Você está doidão, meu irmão, maluco total. Só espero que não se meta em alguma enrascada indo atrás dessa mulher...
— Sei me cuidar, irmão. Agora, se me der licença — levanto da cadeira e ando até a recepção do hotel — preciso desligar. Tenho um dia cheio. Até breve, Theo.
¡Hasta luego! — ele se despede, em espanhol, tirando sarro da minha situação.
Sorrio e desligo. Entrego o telefone a recepcionista e sigo para o meu quarto. Antes de ir à festa, preciso resolver alguns assuntos do trabalho. Tenho uma reunião importante com importadores da região. Sorte nos negócios, até tenho, já no amor... é algo que precisa ser estudado pela NASA.
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Já a noite, caminho pelas ruas estreitas e coloridas de Santa Cruz, vendo vários grupos tocando músicas típicas enquanto algumas espanholas dançam. Mas nenhuma delas é a minha.
Na praça Dona Elvira, ergo meus olhos para ver as estrelas. Sento em um dos bancos decorados com azulejos e fico observando quem passa. Casais apaixonados trocando carícias, mulheres esperando seus parceiros para um encontro e vice e versa, amigos sentados em mesas de um bar qualquer bebendo e falando como farão para agradar suas esposas que estão em casa. Ver tudo isso me faz chegar à conclusão de que meu destino é viver solteiro, pois não me encaixo em nenhumas dessas vidas.
Ouço uma música vinda do começo da praça, e as pessoas dali começam a bater palmas, seguindo o ritmo das batidas dos tambores. Respiro fundo e fecho os olhos, começando a crer que foi um erro vir até aqui, pois cada espanhola que vejo dançando nessas rodas, acho ser Rosa. Esfrego os olhos e quando os abro, mesmo que um pouco embaçada, a cor vermelha viva enche a minha visão. Ergo a cabeça devagar e fito seu rosto marcante diante de mim. Uma mecha de seu cabelo forma uma meia lua na sua testa e, observando com mais atenção, vejo uma pinta do lado do seu olho direito. Ela está com o cabelos presos e rosas vermelhas enfeitam o alto de sua cabeça. Com uma das mãos na cintura, ela se aproxima de mim mais uma vez.
— O que quer? Enlouquecer-me? Se for isso, já conseguiu. Já estou rendido, caído aos seus pés. Completamente de quatro por vocêdigo a última palavra com raiva, mas de mim mesmo.
Rosa Escarlate se aproxima e senta ao meu lado, ignorando o fato de eu estar pronto para sequestra-la e leva-la para longe de toda aquela multidão. Transforma-la em só minha. Ela ignora a todos, os olhos fixos nos meus. Respiro fundo e torço para que meus instintos de homem primitivo não aflorem. Sentir seu perfume é que como se eu tomasse uma injeção de excitação.
— Por favor, Rosa... não...
Ela toca meu rosto e me beija suavemente na bochecha. Fico parado, não movo um músculo do meu corpo.
— Só posso ser sua por uma noite, e nada mais — sussurra em meu ouvido.
— Por que? — viro o meu rosto para encara-la.
— Porque o meu lugar é aqui, em Sevilla.
— Tenho tantas perguntas... Eu passei todo esse ano pensando em como te reencontrar, em como te convencer a ir embora comigo. Pensei em até te levar à força se fosse preciso...
Ela sorri.
— Está rindo do quanto eu sou idiota? — faço menção de me levantar, mas ela me segura pelo braço.
Perdona-me se achou que estava rindo de você. Eu nunca havia me enamorado por un hombre come usted. És um estrangeiro que roubou meu coração.
Arregalo os olhos com a declaração repentina de Rosa.
— Por que nunca me disse nem seu nome?
— Por medo.
— Medo?
Ela abaixa a cabeça. Fica triste de repente, me deixando confuso.
— Minha família nunca permitiria meu relacionamento com um estrangeiro. Meus cinco irmãos, me padre y me madre, nunca aceitariam que sua única filha se encantasse por um homem de fora.
“Em que século estamos?”
— Isso é ridículo, Rosa. Por Deus! — abaixo a cabeça com a mão na testa que já está suada devido ao meu nervosismo.
Ela segura minha mão e diz:
— Eu tenho uma foto sua. Procurei saber de você com a ajuda de Ramón...
Aquele judeu fajuto, filho da mãe! Sabia de tudo sobre a Rosa e não me contou.
— Vou matar aquele judeu mexicano de merda!
— Eu que pedi para que ele não contasse nada. Ele, o Ramón, me deu uma foto sua, quando você tinha ido embora. Disse que tirou da internet de um site sobre negócios e empresas... — Ela respira fundo, está emocionada.
Seguro sua mão e olho no fundo de seus olhos castanhos.
— Por que esse mistério? Por que o jogo? — franzo a testa, querendo a verdade.
— Eu vivo presa em um palacete. Não tenho direto nem de sair sozinha. As mulheres de casa não podem ter contato com nenhum homem de fora. A não ser que meu pai e meus irmãos permitam — Ela respira fundo e aflita, entrelaça as mãos. — Por isso, eu fiz um acordo com meu pai: que sairia com Carlota, minha prima, uma vez por ano para participar da Festa das Flores. Ele relutou, mas depois cedeu. Mesmo com sua dureza, meu pai, às vezes, mostra ter um coração maleável. Enfim, com a ajuda dessa minha prima, decidi criar esse personagem que só aparece na época da Festa. Só para dançar, compreendes? Mas as coisas cresceram e acabei virando uma fantasia dos homens de Sevilla e dos estrangeiros. A misteriosa Rosa Escarlate, a espanhola. — Ela segura as minhas mãos. — Tudo estava bem. Meu coração não sofria pelos homens. Eu, inclusive me vingava daqueles que eram como meu pai, deixando-os caídos aos meus pés... Até que você apareceu... — Ela solta minha mão e abaixa a cabeça.
Balanço a cabeça sem entender onde ela quer chegar. Passo as mãos nos cabelos, estou confuso...
— Deixa-me ver se entendi... — levanto o dedo indicador — Você tem um pai e irmãos que não te deixam ser quem você é. Tratam-na como um objeto. Não querem que tenha um relacionamento com outro homem que não seja aquele que eles escolherem... É isso mesmo?! — ela balança a cabeça, confirmando. — Seu nome é Rosa ou também é falso?
Ela sorri, mas de um jeito triste. Tocando meu queixo, ela responde:
— Rosalinda Herrera Santbañes.
— Você é filha do mafioso Herrera Santbañes, o El Toro? — digo, estreitando o olhar.
Espantada por saber que eu sei quem é o seu pai, ela diz que sim.
— De onde conhece mi padre?
— Seu pai é famoso. No Brasil, ele é uma lenda do crime internacional.
Rosa fica séria. Com certeza se incomodou com o que eu disse.
Mi padre não é um monstro criminoso como todos dizem. — Ela se levanta do banco. — Foi um erro ter lhe contado tudo.
Rosalinda sai pisando duro. Está chateada. E eu, sem pestanejar, a sigo. Depois de toda essa revelação, de descobrir que ela também está apaixonada por mim, não vou deixar que se vá de uma vez por todas. Não mesmo.
Seguro seu braço e a puxo para perto. Ela se debate, mas logo aquieta. Nos encaramos por alguns segundos e o beijo é inevitável. Sentir meus lábios nos seus é como se toda minha vida dependesse daquele contato. Um beijo coberto de paixão e excitação.
Sinto-me vivo. Os lábios de Rosa são quentes, seu beijo me faz ferver. Ela se rende ao que sentimos, finalmente, e eu a seguro com força pela cintura. Mordisco seus lábios, enquanto ela prende minha cabeça com as mãos para que eu não me afaste.  Minutos de puro desejo representados em um único beijo.
— Vem comigo para o Brasil — digo, com os lábios próximos aos dela.
— Já disse que não posso. Não me coloque nessa situação...
Calo-a com mais um beijo, mas ela me afasta.
— Isso é um costume medieval. Estamos no século vinte e um. As mulheres não são objetos. Elas têm vida própria e podem fazer o que quiserem, não são propriedades. Você pode ser o que quiser e viver da maneira que bem entender.
Ela, ainda segurando minha cabeça entre as mãos, diz, olhando em meus olhos:
— Por isso a Rosa Escarlate existe. Ela representa cada mulher que tem a voz, os desejos e ambições calados por um machismo que diz protegê-las. Eu só me sinto livre quando estou vestida de Rosa Escarlate.
A vontade de tira-la dessa tirania absurda só aumenta dentro de mim.
— Para proteger, não precisa reprimir— digo, beijando sua testa. — Eles não te protegem, te oprimem. Isso não é vida, minha linda — passo o polegar direito no seu rosto e limpo uma lágrima que desce.
— Eu queria ter a coragem que a Rosa Escarlate tem — ela me abraça e repousa sua cabeça em meu peito.
— Você tem essa coragem, minha espanhola — abraço Rosalinda com força. Eu quero protegê-la, para sempre.
Ela ainda relutou em vir para o hotel, mas como promessa que fez a si mesma de passar uma noite comigo não podia ser quebrada, ela veio. 


C O N T I N U A...